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D.Albertina vai ao médico
Rodolfo de Souza
24/09/2015 | 07:00
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D.Albertina já estava acordada quando alguém entrou no quarto. Desejava mesmo não ter despertado, hoje e nunca mais. Sua rotina não lhe permite sentir, uma pontinha que seja, de amor por esta vida. Ama sim, a outra, a dos sonhos. Aquela que visita todas as vezes que o sono é chegado e muito bem vindo. Pode ser estranho, encantado, bizarro, o diabo, mas compensa estar ali onde uma infinidade de lugares e situações a fazem participar intensamente da vida, como fizera nos bons tempos. E, naquele espaço exclusivo, também não é submetida ao constrangimento e à dor de ver um ente querido dedicar seu precioso tempo e paciência para auxiliá-la nas tarefas mais elementares.

Lá, ela não é velha nem jovem. Simplesmente é. E também, porque não é doente, conserva ali os dedos das mãos e dos pés e suas pernas não são inúteis varetas mortas, meros apêndices do corpo, funestamente enfaixados.

Compreende, todavia, que aquela não é a sua realidade. Sabe que é prisioneira de um organismo debilitado, quase morto e que o fiapo de sopro divino que ainda o sustenta pulsando, a impede de libertar-se.

E amanhece mais um dia. Seus ouvidos, que ainda funcionam, anunciam a presença masculina, cuja voz doce lhe faz chegar palavras, vãs palavras de ânimo para levantar o seu astral sepultado de longa data. O filho sabe que é impossível ressuscitá-lo. Mesmo assim, se esforça. D.Albertina lamenta por ele e pela má sorte de ter um cérebro em bom estado de conservação, funcionando, pois, a contento. Se tivesse enlouquecido talvez pudesse contar com a proteção da demência que a levaria para outros céus, ou infernos. Mas D.Albertina é lúcida e castigo pior do que a lucidez em momento de loucura suprema, não há. Confunde, às vezes, sanidade com insanidade, diante do caos.

Pensando bem, talvez fosse pior! O que seria deste garoto e da filha, um pouco mais velha, se ela pirasse de vez?

Conjecturas à parte, hoje a boa senhora deve ir ao consultório médico. Para que finalidade, ela nem desconfia. Toma uma farmácia de comprimidos todos os dias... E o diacho da sonda, enfiada em sua goela, quando não a alimenta, permanece dependurada e atada com esparadrapo em seu nariz. Imagem deplorável que, unida ao quadro geral de velha que ultrapassou os noventa, só pode resultar numa pintura do apocalipse pessoal que muitos deverão enfrentar.

D.Albertina ouve o filho que lhe fala manso como se desejasse, de algum modo, aliviar sua dor. A boa conversa da mãe, afinal, também lhe faz falta. Ela, que sempre amou falar sobre conhecimento e esperança, agora anda meio calada, emitindo somente grunhidos para pedir qualquer coisa ou só para reclamar do seu infortúnio. Queixa-se aos presentes, ou a ninguém. A flacidez da boca, a ausência de dentes e a debilidade a impedem de falar.

Ler também não pode mais, uma vez que a catarata tomou-lhe a vista e a palavra escrita que tanto amou, transformou-se numa pintura compacta e negra. De qualquer forma, não conseguiria mesmo tomar nas mãos um livro, folheá-lo e sentir o aroma de suas ricas páginas, cheiro bom de tempos idos.

Mas é preciso ir ao médico para que este possa curá-la de todos os males. Imagine!
Na sala de espera lotada, D.Albertina se torna alvo das atenções quando entra triunfal. Chapéu de lã enfiado na cabeça baixa, corpo mutilado e esquelético em cima de uma cadeira de rodas, pouco lhe importa os olhares indagadores e curiosos.

E o médico, geriatra experiente, dedica cinco minutos de seu valioso tempo para examiná-la de rabo de olho e dizer aos filhos que continuem com a medicação.

* Rodolfo de Souza nasceu e mora em Santo André. É professor e autor do blog cafeecronicas.wordpress.com

E-mail para esta coluna: souza.rodolfo@hotmail.com. 




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