Cultura & Lazer Titulo
Vida nova na música
Gislaine Gutierre
Do Diário do Grande ABC
27/12/2006 | 20:52
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Em 1999, enquanto a unidade Tatuapé da Febem (Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor) vivia um período turbulento, com grandes rebeliões e fugas, a antropóloga Rose Satiko Gitirana Hikiji tentava, com câmera em punho e cercada de toda a vigilância do local, entender o que significava o aprendizado musical para aquelas crianças e jovens em confinamento. O resultado de meses de convivência e pesquisa sai agora no livro A Música e o Risco (Edusp, 256 págs., R$ 40), texto de sua tese de doutorado em antropologia na USP.

Rose Satiko, de São Bernardo, se deteve sobre as atividades de três pólos do Projeto Guri: Febem Tatuapé, oficina Amácio Mazzaropi e POF (Pólo de Orientação Familiar) em uma comunidade carente no Morumbi. “O que me interessava era o processo de aprendizado desses jovens”, diz Rose. O foco, portanto, não foi o Projeto Guri em si, que hoje atende a 48 mil pessoas em 326 unidades abertas ao público e a 49 da Febem.

Na Febem, resolveu levar uma câmera para trabalhar com os jovens. Colocou a máquina nas mãos dos internos e o resultado foram cenas curiosas: alguns filmaram closes de partes femininas, mas a grande maioria adotou a postura dos telejornais policiais, sempre com a figura do repórter, da autoridade repressora e do “menor”.

Os mais interessantes registros de todo o estudo ganharam vida própria: Prelúdio e Microfone, Senhora. O primeiro traz imagens de uma apresentação do Projeto Guri e o segundo, a gravação de um CD de rap em um estúdio em São Paulo, com entrevistas conduzidas espontaneamente por um dos jovens. Os vídeos, que integram o material da tese, podem ser adquiridos no Laboratório de Imagem e Som em Antropologia da USP (tel.: 3091-3045).

Artistas - Se a violência integra o cotidiano dos internos como as necessidades mais básicas do dia-a-dia, Rose constata que a música na vida deles assume dimensão transformadora.

Segundo a antropóloga, os jovens se interessam, e muito, pelo aprendizado de instrumentos de orquestra. “Eles têm a consciência de que quase tudo lá é passageiro e querem aproveitar a oportunidade de aprender algo diferente, que não teriam na rua”, diz. A dedicação é intensa. “Às vezes, o professor guarda o instrumento, encerra a aula e eles continuam discutindo; ficam até três horas seguidas tentando tocar”, afirma.

O ensino musical ajuda a “matar o tempo” ocioso, tão cruel num contexto de confinamento, a afastar o jovem do pátio, desenvolver sensibilidade e disciplina e aprender a agir coletivamente. O discurso é social. No entanto, na hora em que estão no palco, é como músicos que eles querem ser vistos. Não como jovens em situação de risco, ou carentes ou em processo de recuperação de sua auto-estima. E Rose pôde presenciar o constrangimento mudo desses jovens que são genericamente tratados nos discursos e que às vezes, sequer são internos da Febem.

Ela entende – e os jovens também – que no “mundão”será difícil um ex-interno se tornar músico. E que alunos dos pólos comunitários também encontrarão dificuldades. Provavelmente não terão instrumentos nem possibilidade de continuar os estudos.

Mas eles saem dessa experiência nitidamente melhores. Como a adolescente Alessandra, ex-spalla da orquestra da oficina Amácio Mazzaropi. “Ela disse que pode ser que não se torne uma musicista profissional, mas agora ela percebe que é capaz. Se precisar fazer qualquer coisa, ela vai lá e faz”.



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