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Decanos do rap soltam o verbo
Cássio Gomes Neves
Do Diário do Grande ABC
16/12/2000 | 17:51
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O Diário ouviu quatro dos homens-fortes do hip hop nacional, sábado passado, na Casa do Hip Hop, em Diadema: Gerson King Combo, 55 anos, introdutor da soul music no Brasil, por meio de shows e bailes no Rio, em meados dos anos 70; Nelson Triunfo, 46 anos, b.boy (dançarino de break) que ditou os primeiros passos no Clube Palmeiras e nas ruas Sao Bento e 24 de Maio, ambas em Sao Paulo; Nino Brown, 38 anos, outro b.boy, que, além de `arqueólogo' e pesquisador da cultura negra, é representante no país da Zulu Nation, entidade norte-americana de valorizaçao black; e Thaíde, 32 anos, rapper que geralmente se apresenta ao lado do parceiro DJ Hum. A seguir, os principais trechos da entrevista:

Começo - O caçula Thaíde abre a mesa-redonda indagando a King Combo, em tom de reverência, sobre o início de carreira. O soulman, de chapéu e suspensórios: "Comecei no meio de uma repressao braba, a ditadura estava aí, na porta de casa. Se você acha que a periferia é oprimida hoje, você nao pode imaginar como era naquela época."

Antes de entrar no quesito música, Combo ainda cita uma breve experiência entre os milicos. "Eu me formei na Academia de Pára-Quedistas do Rio, pois a carreira militar prometia uns bons louros. Foi onde cruzei com o Caetano (Veloso, cantor e compositor), que ficou encarcerado lá antes de ser espirrado para o exílio." A partir de entao, o rei esqueceu os pára-quedas e se atirou no campo musical, no qual produziu seu mais famoso rebento: a música Mandamentos Black.

É justamente essa tábua doutrinária, gravada no primeiro disco de Gerson King Combo, que torna a discussao mais acirrada. Thaíde festeja ao afirmar que "essa música é um dos grandes signos do negro aqui, meu irmao. Fala da identidade da negritude e é um p... exemplo de como a gente deve se orgulhar de ser negro." Sem cerimônias, Nelson Triunfo interrompe e nao economiza confetes ao se dirigir ao vizinho de cadeira: "Mas esse negócio de auto-estima você também faz, Thaíde. Você é um cara que faz rap informativo, que nao encara a música como oba-oba, nao. Dá exemplos de tudo quanto é gente que fez alguma coisa pela cultura desse país, que lutou prá c... para poder gritar alto que era negro."

Outras raízes - Enquanto isso, o b.boy Nino Brown, tímido confesso, concorda com toda declaraçao que é proferida em torno da mesa. Menos acanhado, Thaíde agradece as observaçoes de Triunfo e arremata dando exemplos de suas atividades como integrante do corpo docente da Casa do Hip Hop de Diadema. "Trouxe só coisa fina para essa molecada ouvir. Música das antigas como as composiçoes de Originais do Samba, Toni Tornado e muitos outros." E, num fôlego só, Triunfo diz que "isso é som que branco nao faz, é música que vem de dentro, que mexe com o interior."

Compromisso social - Ainda calado, Nino Brown recorre ao gestual para participar da conversa, principalmente quando Triunfo denuncia a influência perigosa a que está submetida a nova geraçao. "Eu conheço um cara, soldado, amigo meu. Na festa de aniversário de Jean (5 anos), meu filho, o sujeito perguntou se ele queria ganhar uma arminha de plástico. Eu nem precisei me meter. O moleque já chegou agradecendo, mas recusando. `Papai nao gosta que eu pegue em arma.'" Compenetrado, Nino Brown acena com a cabeça, demonstrando estar de acordo com o amigo.

Os quatro se atêm, entusiasmados, à importância social e cultural que exercem entre os iniciantes. "Se o cara precisa baratinar e tal, eu até entendo o seu envolvimento com drogas. Eu é que nao vou incentivar esse tipo de coisa, porque sei que sou exemplo para muita gente", fala King Combo, minutos depois de ser ovacionado no show que fez sobre o palco da Casa do Hip Hop de Diadema. O público, em sua maioria, nao tinha idade superior a 25 anos.

Bonitao - Propositalmente ou nao, os quatro entrevistados sao os autores de uma cartilha comportamental. E King Combo nada teme ao assumir essa responsabilidade. "Eu comecei com um certo receio. Me faltavam palavras para passar uma mensagem a quem quer que fosse. Só me toquei disso quando virei para mim mesmo e disse: `Tu nao é feio só porque é negro. Tu é bonitao. Vai ficar aí de bobeira?". Essa reafirmaçao é atitude corrente hoje no hip hop, decorrência da imposiçao da negritude nos anos 70, seja com o soul ou com os filmes da blaxploitation. "Hoje, é essencial essa enxurrada de informaçao, esse acesso à história da nossa raça que o pessoal que circula aqui em Diadema, em Sao Paulo e no Rio tem", arremata Combo.

Milionários do rap - "Quando você fala pelos outros, tem de ter cuidado. Nao pode pegar leve, mas também nao dá para descambar. Chegar, dizer palavrao, xingar policial, sem mais nem menos, nao leva a lugar nenhum. Tem de ser bem dosado", dispara King Combo. Quem emenda a `majestade do soul' é Thaíde, que nao poupa o comportamento "de um representante da comunidade que está a fim de sair com negras e, quando chega no topo, só quer saber de loirinha, porque entao vao dizer que ele está bem de vida."

O discurso nao só vocifera contra essa negaçao étnica, mas também contra o desrespeito protagonizado por alguns que andam freqüentando a parada de sucessos. "É preciso respeito. O cara que ontem estava lá, tocando pagode, bebendo cerveja, nao pode chegar menosprezando a comunidade com carro importado e loira do lado. Isso mexe com os brios." E completa: "Nao duvide que haverá também os milionários do rap, mas espero que eles estejam imunes a isso."

Pirataria - Quando o assunto é a pirataria na indústria fonográfica, surge um paradoxo compreensível. Como criticar a pirataria se seus seguidores reclamam por mais recursos para consumir cultura? Tudo fica mais complexo quando se pensa que uma das bandeiras do hip hop é a difusao da ideologia e do pensar da periferia, facilitada por CDs mais baratos e mais acessíveis. "É isso aí. E tem mais: o cara precisa de emprego. Se ele está vendendo CD em barraquinha, nao é porque gosta. É por falta de alternativa", conclui Thaíde pouco antes de se despedir. Ao sair da sala, deixa Gerson King Combo, Nelson Triunfo e Nino Brown à mercê de fas que aguardavam na soleira da porta. Estavam ali atrás de autógrafos, fotografias do trio e, sobretudo, conselhos.




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