Economia Titulo Ocupação
Metade dos negros atua em serviços

Mesmo assim, brancos e orientais são maioria no ramo na região; afrodescendentes têm maior número somente na construção e entre domésticos

Soraia Abreu Pedrozo
Do Diário do Grande ABC
20/11/2014 | 07:11
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Ari Paleta/DGABC


Quando tinha 10 anos, Carmen Jane dos Santos, hoje com 53, sentiu pela primeira vez que, se quisesse vencer profissionalmente, teria que dar um jeito de se destacar e ser aceita pela sociedade. “No dia da apresentação da quadrilha, durante a festa junina da escola, o meu par não foi porque seus pais souberam que eu era negra. No mesmo ano, em apresentação de teatro, enquanto minhas colegas de classe ganhavam papéis de princesas, fui escalada para fazer o Saci”, lembra a hoje advogada especializada em Direito Empresarial e Contratual, sócia do Global Jurídica, presidente da comissão de mediação, conciliação, negociação e arbitragem da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) em Santo André e diretora executiva da Câmara de Mediação e Arbitragem da Acisa (Associação Comercial e Industrial de Santo André).

“Meu pai, eletricista e marceneiro, frisava a importância de seus 12 filhos adquirirem conhecimento. E foi justamente o conhecimento que me levou à igualdade. Apesar de pobre, sempre fui boa aluna, fui a única aluna negra da classe da faculdade de Direito. Consegui reconhecimento por estudar muito”, conta Carmen, que revela até hoje ter problemas com o pagamento de honorários. “É um racismo disfarçado que se mostra na hora do pagamento. Muitas vezes os clientes, quando veem que sou negra, querem pagar menos. Parece até que eles se perguntam: ‘Será que você vale tudo isso mesmo?’”

O médico Tomás Smith-Howard, 57, embora seja panamenho, e tenha se mudado para o País 34 anos atrás por achar que aqui teria mais oportunidades e após ter conquistado bolsa de estudos em concurso da Embaixada do Brasil no Panamá, também coleciona histórias que explicitam o preconceito do povo brasileiro. “No próprio hospital onde trabalho, o Nardini, em Mauá, já fui confundido algumas vezes com segurança ou enfermeiro. Certa vez, entrei no consultório, o paciente já estava lá, e ele me perguntou: ‘Você sabe se o doutor vai demorar?’. Ou, quando digo que sou doutor, perguntam se sou delegado, por acharem que negros têm chances de ter bons cargos só na polícia”, conta ele, que mora em São Bernardo.

Smith-Howard, especializado em ginecologia e obstetrícia, além de funcionário público da Prefeitura de Mauá, é delegado do Conselho Regional de Medicina de São Paulo e diretor presidente da Medoc, consultoria de medicina ocupacional. “É preciso estudar bastante e não se afastar dos seus sonhos. A educação faz toda a diferença e abre portas. E graças ao intelecto consegui reconhecimento. Mas muita gente que não sabe quem sou eu ainda me trata com depreciação.”

Assim como Carmen e Howard, no Grande ABC a metade dos trabalhadores negros atua no setor de serviços. Nem todos, entretanto, com a qualificação e as funções deles, que integram uma minoria.

Apesar da forte representatividade, os brancos e orientais ainda são maioria no ramo. O mesmo ocorre com a indústria – 24,9% dos profissionais afrodescendentes estão no setor produtivo, enquanto entre os não negros, 26,8% atuam em fábricas – e com o comércio, com 16,4% e 17%, respectivamente. Os dois únicos segmentos em que os funcionários negros são maioria são a construção e serviços domésticos. “O preconceito ainda é muito forte; não conseguimos mudar o pensamento cultural de que o negro não tem capacidade intelectual”, lamenta o coordenador do Grupo de Trabalho Igualdade Racial, Thiago Pereira de Araújo.


Maior ingresso foi em funções que pagam menos

Os subsetores que mais contribuíram ao ingresso de negros no mercado de trabalho do Grande ABC no ano passado foram justamente aqueles em que os afrodescendentes são maioria. São eles: transporte, armazenagem e correio (6,8%); atividades administrativas e serviços complementares (7%); alojamento e alimentação, outras atividades de serviços, artes, cultura, esporte e recreação (11,5%).

“São áreas que, em geral, requerem menor qualificação e anos de estudo a menos, o que possibilita maior inserção no mercado de trabalho”, diz a pesquisadora do Dieese Ana Maria Belavenuto.

Técnica do Dieese na região, Zeíra Camargo aponta que historicamente a população negra acaba se agregando em setores com menor qualificação. “Eles estão mais concentrados em funções operacionais, geralmente atividades braçais, que oferecem rendimentos menores. Além disso, poucos estão em cargos de liderança, o que faz com que a média salarial seja menor. O grande desafio é fazer com que a população dispute os postos de trabalho com condições iguais.”

Segundo o Diário publicou na edição de ontem, o salário do negro é, em média, 38,2% menor que o pago ao não negro, conforme informações da PED (Pesquisa de Emprego e Desemprego) do Seade/Dieese.

Mesmo não ocupando cargo de liderança, o cabeleireiro andreense Carlos Magno dos Santos, 42, conhecido como Lynho, persistiu em seu desejo e conquistou papel de destaque no segmento que, desde criança, sonhava em atuar. Ele, que mantém espécie de cooperativa com outros três profissionais no Centro da cidade e paga o aluguel da cadeira, se especializou em cabelo afro masculino. “No fim dos anos 1980, havia um salão muito famoso no ramo, o Negritude Cabeleireiro, e eu sonhava em trabalhar lá. Pegava meus amigos como cobaia.”

Lynho se destacou nos cortes diferenciados, com desenhos, e passou a atender o grupo de pagode Exaltasamba e jogadores de futebol. “Estudar é o melhor caminho. Embora eu seja autodidata em cortes, fiz cursos para me aprimorar, como o de química. Existem aulas gratuitas para quem quer começar, e sempre às segundas-feiras, dia de folga.”

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