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Palhaços das Folias de Reis marcam profano e o sagrado
Daniel Bitter
05/04/2010 | 07:00
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Ao sinal do toque acelerado da sanfona e dos instrumentos de percussão, uma extensa roda de espectadores animados se forma, aguardando ansiosamente a entrada do palhaço, personagem mascarado da Folia de Reis. O palhaço pede licença ao dono da casa para iniciar sua apresentação espetacular a que todos chamam de brincadeira, na qual esse personagem de aparência e gestos assustadores declama versos rimados e cômicos conhecidos como chulas, como o abaixo:

"Quem é bom já nasce feito
Eu tento fazer o que pode
Me dá licença meu povo
que eu tô dentro do pagode
você vai me dar os dois real
eu posso falar do seu bigode?"
(Palhaço Criolo, de Laranjal, MG)

As Folias de Reis são manifestações culturais populares muito difundidas no território brasileiro, tanto em áreas rurais quanto urbanas, apresentando grande diversidade de variações regionais e denominações locais. As folias procuram reproduzir a viagem mítica à cidade de Belém, local de nascimento de Jesus, segundo a tradição cristã, que os reis magos - Gaspar, Melquior e Baltasar - teriam feito para adorar e presentear o menino com ouro, incenso e mirra.

Tratam-se de grupos de cantores e instrumentistas que realizam visitas rituais, chamadas de jornadas, às casas de devotos, distribuindo bênçãos em troca de donativos para a realização de uma grande festa. Em geral, as jornadas são realizadas entre os dias 25 de dezembro e 6 de janeiro (Dia de Reis).

A brincadeira é apenas parte das atividades realizadas

A brincadeira do palhaço é apenas uma parte das atividades realizadas por uma Folia de Reis. A visitação às casas de devotos envolve sequência ritualizada de ações, como chegada, entrada na casa, distribuição de bênçãos, refeição, apresentação dos palhaços, ofertas, agradecimentos e despedida.

A apresentação do personagem desenrola-se em forte interação com o público e com os familiares da casa. Seu jogo está em divertir os espectadores com versos e malabarismos de todo tipo e conseguir tirar proveito do dinheiro ofertado pelos presentes, que é jogado no chão. Os ganhos, assim, dependem de uma negociação permanente entre palhaço e público, na qual se trocam versos ou bailados por dinheiro.

UM MUNDO COMPLEXO
Os palhaços são personagens sempre cercados de obrigações, regras e restrições. Eles devem permanecer do lado de fora das casas dos devotos até o momento de sua apresentação e, por vezes, considera-se perigoso tocar em suas vestes ou máscara.

O motivo de tanto cuidado com esses personagens misteriosos está nos significados a eles atribuídos. Algumas interpretações os relacionam com o diabo (o cão), com o rei Herodes ou com seus soldados, que teriam saído em perseguição para matar o menino Jesus, segundo os mitos narrados.

Palhaços estão aparentemente mais ligados à esfera profana, mas seu vínculo com a folia se dá certamente pela via sagrada. Uma pessoa, por exemplo, torna-se um palhaço, muitas vezes, em decorrência do pagamento de uma promessa feita aos reis magos.

A brincadeira do palhaço é, de certa forma, o lugar potencial da subversão, da desordem, da criatividade, em contraste com a formalidade e a solenidade do canto, da música, das palavras e dos gestos dos foliões. Essas oposições parecem evidenciar um sistema simbólico que aponta para o fato de que foliões e devotos compõem uma visão totalizadora do mundo.

A característica mais marcante do palhaço, entretanto, parece ser sua ambivalência. O palhaço pode ser visto como um ser liminar que tem o poder de transitar entre os domínios do puro e do impuro, do bem e do mal. Sua ambivalência é atestada pela ideia difundida entre foliões de que um bom palhaço deve ter tanto conhecimento sobre as profecias quanto um mestre, podendo até mesmo substituí-lo em uma eventualidade.

A ambiguidade própria do palhaço o leva a lidar concretamente com forças perigosas decorrentes da ação das divindades ou dos próprios homens. Por esta razão, muitos são os preparativos que os palhaços devem realizar antes de se fardar e sair em uma folia. Ele rezam, acendem velas, louvam a bandeira, são purificados por passes de benzedeiras etc. Os palhaços também acreditam ser alvo frequente de bruxaria, muitas vezes causada por disputas e rivalidades, nas quais pode estar em jogo a manutenção de certo prestígio pessoal. Palhaços ficam mudos ou desmaiam e atribuem o fato, com frequência, a ações malfazejas realizadas por grupos de foliões rivais.

Importância do personagem está em renovar e atualizar

Para receber a bandeira de volta, ao fim do longo ciclo de visitações, o altar deve estar cuidadosamente arrumado, com imagens de santos, lâmpadas coloridas e enfeites natalinos. Nessa ocasião, os foliões passam por um ritual especialmente importante, no qual se despedem da bandeira. Os palhaços retiram as máscaras e caminham de joelhos em direção à bandeira, deitando-se de bruços diante dela.

Diz-se que, nessa ocasião, os palhaços estão pedindo perdão pela perseguição ao menino Jesus, como aparece nos mitos, e declarando-se arrependidos. Trata-se de uma conversão simbólica, por meio da qual é confirmada a supremacia moral do bem contra o mal, da ordem contra a desordem. Uma das muitas explicações que foliões dão para o uso de máscaras pelos palhaços é que, de acordo com os mitos, soldados de Herodes que se converteram, ao ver o menino Jesus, as teriam adotado para que o próprio Herodes não os reconhecesse e acusasse de traição.

A importância do palhaço está em confirmar ideias, valores morais e visão de mundo de foliões e devotos e, ao mesmo tempo, renová-los e atualizá-los por meio de seu poder criativo. Por meio da Folia de Reis, manifestação cultural na qual a relação entre mito e rito, pensamento e ação, ocupa lugar central, foliões e devotos ordenam continuamente o mundo. Transmitir esses saberes na forma de uma tradição é, necessariamente, recriá-la.




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