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‘Educação é o meio para desconstruir o machismo’, diz Maria da Penha, símbolo do combate da violência contra a mulher

Vítima de duas tentativas de feminicídio, sua história foi um marco para a criação das leis de proteção às mulheres vítimas de violência

Thainá Lana
06/03/2023 | 06:02
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(Foto: Cid Moreira Fotografias/Divulgação)


Atualizada às 15h17

Na semana do Dia Internacional da Mulher, celebrado anualmente em 8 de março, o Diário conversou com Maria da Penha, símbolo de luta por uma vida livre de violência.

Sua trajetória em busca de justiça, que durou 19 anos e seis meses, resultou na criação da Lei 11.340, batizada com seu nome, e que é considerada pela ONU (Organização das Nacionais Unidas) uma das três melhores legislações do mundo no combate à violência contra mulher. A contribuição de Maria da Penha para garantia dos direitos das mulheres brasileiras lhe proporcionou a indicação ao Prêmio Nobel da Paz em 2017.

Raio-X

Nome: Maria da Penha Maia Fernandes

Idade: 78 anos

Local de nascimento: Fortaleza, Ceará

Formação: Farmácia e Bioquímica

Hobby: Artesanato

Local predileto: Sua casa

Livro que recomenda: Metendo a Colher de Wagner Cinelli de Paula Freitas

Artista que marcou sua vida: Martin Luther King Jr

Profissão: Aposentada

Onde trabalha: Instituto Maria da Penha

Leia a entrevista exclusiva:

Como foram as duas tentativas de feminicídio que você sofreu?
No dia 29 de março de 1983 fui alvejada por um tiro nas costas enquanto dormia. No momento não conseguia me mexer e só rezava para não morrer para que meus três filhos não ficassem órfãos de mãe. Fui socorrida pelos vizinhos e levada ao hospital. Meu ex-marido Marco Antonio Heredia Viveros falou na época que havíamos sofrido uma tentativa de assalto. Fiquei quatro meses hospitalizada, passei por duas cirurgias e como resultado da agressão fiquei paraplégica. A segunda tentativa de homicídio ocorreu na minha volta para casa, ele tentou me eletrocutar durante o banho, deixando a fiação solta. As funcionárias que trabalhavam em casa me ajudaram.

De qual maneira você descobriu que o autor era seu ex-marido?
Não tinha certeza de nada, durante os meses em que estava em recuperação pensava realmente que tinha sido um assalto. Tudo foi descoberto pela polícia, com base nos depoimentos da vizinhaça, do vigia da rua, das funcionárias que trabalhavam em casa e também devido as contradições apresentadas pelo meu ex-marido. Quando foi chamado para depor pela segunda vez, ele apresentou uma versão diferente do primeiro depoimento e, a partir das contradições, foi indiciado como autor de tentativa de homicídio.

Como surgiu a ideia de escrever o livro ‘Sobrevivi.. posso contar’? E por que decidiu lançá-lo?
No momento em que a polícia indiciou meu ex-marido como autor da tentativa de homicídio, começou a minha grande luta por justiça, porque o processo quando entrou no poder judiciário não andava, ficava retido por conta de recursos. O primeiro julgamento ocorreu em 1991, oito anos após o crime, e depois de três tentativas de adiamento. O agressor foi setenciado a 15 anos de prisão, mas devido a recursos solicitados pela defesa saiu em liberdade. Foi um momento extremamente doloroso para mim, fiquei muito decepcionada. Depois do julgamento, me recolhi alguns dias, estava extramente triste e decepcionada, até pensei em desistir da busca por justiça, fiquei desacreditada. Após alguns meses, escrevi o livro sobre o caso com todas as informações do processo e também com todas as contradições existentes do réu. Se a Justiça não foi capaz de condêna-lo, e anulou o julgamento, quem lesse o livro iria saber que a Justiça é falha. Por isso, considero este livro a carta de alforria das mulheres brasileiras.

A partir do seu primeiro livro, o seu caso foi denunciado à OEA (Organização dos Estados Americanos) e o Brasil foi responsabilizado por negligência em relação ao combate à violência doméstica praticada contra as mulheres brasileiras. Como você chegou até o órgão internacional para fazer a denúncia que influenciou na criação da Lei 11.340, mais conhecida como Lei Maria da Penha?
Em 1998, o Cejil (Centro para a Justiça e o Direito Internacional) e o Cladem (Comitê Latino-americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher) entraram em contato comigo solicitando cópias do processo e exemplares do livro para juntos fazermos uma denúncia na Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA. Não tinha noção de como aquela denúncia poderia ajudar no meu caso, mas tinha esperança de que alguma coisa boa iria acontecer. Durante o processo, de 1998 a 2001, o Estado Brasileiro não respondeu nenhum dos quatro ofícios enviados pelo órgão interncional que apontava grave violação de direitos humanos, mesmo o País tendo assinado e ratificado diversos tratados sobre o tema. Então, em 2001, o Brasil foi responsabilizado por negligência, omissão e tolerância em relação à violência doméstica praticada contra as mulheres brasileiras e recebeu algumas recomendações do OEA, entre elas finalizar o processamento penal do responsável pela agressão, mudanças na legislação de enfrentamento à violência contra mulher, além pagar uma indenização para mim, tanto material quanto símbolica. Foi assim que, em agosto de 2006, foi sancionada a Lei 11.340 que leva meu nome.

Você lutou 19 anos e seis meses pela condenação do seu agressor. Quando ele foi finalmente preso, como você se sentiu?
Faltavam seis meses para o crime preescrever quando a OEA emitiu as recomendações, entre uma delas foi que o agressor fosse punido. Houve um segundo julgamento, em 1996, e aconteceu a mesma coisa do primeiro, ele foi condenado e novamente os advogados pediram anulação. Durante esse intervalo, a OEA pediu informações ao Brasil sobre como estava a situação das mulheres vítimas de violência doméstica no País, e em nenhum momento houve resposta. Foi aí que as orientações do órgão foram enviadas ao Brasil, e em 2002 meu ex-marido foi preso e condenado pelas agressões e pelo tiro. Não vou negar, me senti uma justiceira. Fiquei muito feliz porque tudo que tinha escrito no livro foi comprovado, mas a minha maior alegria mesmo foi a mudança na legislação brasileira, que ajudou diversas vítimas.

Em 2007, você foi indicada ao Nobel da Paz devido à sua luta pelo fim da violência doméstica. Como você se sente sendo simbolo tão emblemático da causa?
Me sinto cada vez mais responsável e comprometida com a causa. Depois da lei, minha vida mudou completamente, conheci todos os estados brasileiros, viajei para fora do País, palestrei sobre o tema, dei entrevistas, participei de diversos eventos, sem contar o carinho que recebi e ainda recebo das mulheres onde vou. Muitas me abraçam e dizem ‘Se não fosse por você, pela sua lei, não estaria viva hoje.’

A Lei Maria da Penha precisa passar por alteração ou alguma atualização?
Não. Acredito que precisa ter mais compromisso dos gestores públicos com a norma, por exemplo, nos pequenos municípios existe alguma política pública para atender a vítima de violência doméstica? O município, por menor que seja, precisa ter um centro de referência da mullher em alguma unidade de saúde. Porque é o local onde a vítima vai se interar sobre os seus direitos, vai ser atendida por uma equipe multidiciplinar, com psicólogo, advogado e serviço social, e depois poderá ser encaminhada para outra cidade que disponibilize outros serviços para auxiliar a vítima, como a DDM (Delegacia de Defesa da Mulher). A lei não precisa de revisão, é necessário ampliar as políticas públicas de proteção às vítimas de violência doméstica.

Na sua opinião, o que ainda é preciso fazer para que os casos de violência contra mulher diminuam?
Investir em educação. Precisamos levar a educação do respeito ao outro nas escolas, a partir do ensino fundamental. As meninas são violentadas em suas casas, nas comunidades em que moram, veem o pai batendo na sua mãe, e todo esse ciclo de violência é normalizado pelas pessoas a sua volta. Educação é o meio para desconstruir o machismo e o patriarcado, que são as causas da violência contra mulher. Uma palestra pode ajudar a salvar uma vida. Conscientização é o principal caminho, por isso criei o Instituto Maria da Penha, para aumentar a educação e conscientização sobre o tema.

As mulheres vítimas de violência moral ou psicológica têm mais dificuldades de identificar que estão em um relacionamento abusivo?
A pancada demora mais a sair e você fica mais atenta àquela pessoa que te bateu. Porém, no caso da violência piscológica, o pedido de desculpas apaga o episódio. A violência piscológica é mais fácil de ser esquecida que um braço quebrado. Normalizam o comportamento agressivo do homem, é a cultura machista, onde a mulher é ensinada a deixar passar esses episódiosde violência porque homem é ‘assim mesmo.’

O Grande ABC possui cinco delegacias da mulher. Porém, esses locais funcionam em horário comercial e não abrem aos feriados e fins de semana. O que você pensa sobre isso?
Nos fins de semana é quando ocorre a maioria das agressões, período em que a violência aumenta, principalmente por conta do uso abusivo de álcool por parte dos homens. Essa limitação de horário acaba coibindo e desestimulando a vítima a realizar a denúncia nesses locais, que são referência de atendimento para esses casos. Por isso, é extremamente importante que terceiros façam denúncias anônimas por outros canais telefônicos, por exemplo.

Segundo pesquisa realizada pelo Instituto Maria da Penha, cada vítima de feminicídio deixa, em média, três órfãos. Você ressalta a importância de olhar para os órfãos invisíveis da violência contra mulher, pode explicar melhor sobre isso?
Eu mesma teria deixado três filhos na orfandade se não tivesse sobrevivido. Essas crianças, órfãos do feminicídio, precisam ser identificadas nas escolas para receber atendimento piscológico. Na maioria das vezes, esses órfãos são acolhidos pela família do agressor, que podem reproduzir o discurso machista do pai, ou seja, vão culpar a mãe, dizer que ela foi responsável pela sua morte e até normalizar a agressão. Isso irá gerar mais trauma na criança, que será criada para concordar com tudo, ser boa dona de casa, obedecer o marido, e todos os outros comportamentos para que ela seja submissa. Precisamos olhar por elas e cuidar para que esse ciclo de violência não se repita.




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