É fácil enquadrar a cantora Dolores Duran (1930-1959) ao seu período. A voz impostada, o samba-canção comandando o ápice da era do rádio, os estandartes internacionais invadindo as vitrolas brasileiras, tudo isso fundindo-se à era boêmia que tanto marcou o Rio de Janeiro na década de 1950.

Seus clássicos, A Noite do Meu Bem, Fim de Caso e Por Causa de Você, para completar, endossariam o estilo de cantora de fossa, não fosse todo o resto, agora disponível no box Os Anos Dourados de Dolores Duran (EMI, preço médio R$ 100).

Versatilidade é a principal marca dos oito CDs que compõem a caixa, que conta com a discografia completa da cantora, algumas raridades e um disco duplo com releitura de suas obras.

Das 103 faixas remixadas disponíveis, 75 são cantadas pela compositora e intérprete. E não há só dor de cotovelo. Uma das particularidades são as faixas internacionais, que mostram a habilidade de Dolores para cantar em outras línguas - ela entendia bem inglês, francês, espanhol, italiano e alemão. Num dos discos, canta em todos esses idiomas, e ainda em esperanto.

Dos tempos de crooner, o que foi até atingir o estrelato, traz para os álbuns grandes hits universais. Entre eles, My Funny Valentine, La Marie-Vison, Ave Maria Lola, Love me Forever e Only You. Há apenas uma canção inédita na voz da cantora em todos os discos, a francesa Mes Mains.

De canções brasileiras, ela explora um fecundo terreno. Do samba à fossa, passando pelo baião, que começava a despontar do nordeste. Estão representados, na voz de Dolores, Antonio Maria Billy Branco (que foi namorado dela) e Chico Anysio, em muitos dos baiões que compôs antes de se tornar um dos maiores humoristas brasileiros.

O mais interessante é observar que não existe miscelânea. Os mais diferentes padrões musicais que Dolores traz para o seu trabalho não estão adaptados para um timbre ou estilo. Em voz e melodia, a cantora e seus músicos recriam cada um dos universos musicais que exploram. O bolero e o samba-canção carregam dor; o baião, o humor ingênuo, os estandartes românticos, a mesma aura fina dos originais; o fox, o clima de cabaré francês, e por aí vai.

ATEMPORAL - Outra evidência que faz Dolores fugir da obviedade é o seu papel de compositora que se projeta para além do seu tempo. Isso pode ser observado principalmente na voz de outros cantores. As suas composições, nos dois discos, cabem na interpretação de gente como Elizeth Cardoso, Sylvia Telles, Nana Caymmi, Clara Nunes e Altemar Dutra.

Apesar da pluralidade das gravações, as músicas não estão renovadas, como as que vieram no lançamento, em 2007, do disco A Música de Dolores Duran (Lua Music). Nesse trabalho, cantores como Paulo Moska, Leila Pinheiro, Fafá de Belém e Toni Platão reinterpretaram as letras de amor dela com jovialidade e fineza, descaracterizando o tom orquestral que se dava às canções na década de 1950.

Adiléia da Silva Rocha, como nasceu Dolores, sempre teve seu universo musical voltado à boemia e aos amores da noite. Todas as suas composições resgatam esses mundos. Em vida, suas composições foram desvalorizadas pelas gravadoras.

Por Causa de Você, composta em parceria com o piano de Tom Jobim, foi feita de maneira inusitada. Ao ouvir a melodia, que estava destinada a outro compositor, Dolores rapidamente rabiscou os versos da canção em um guardanapo com um lápis de olho. Entregou a Jobim e disse que não admitiria que a canção tivesse outra letra.

Morreu aos 29 anos do coração. Habituada a chegar em casa ao amanhecer, depois de varar as noites cantando, bebendo e jogando conversa fora, Dolores pediu que a empregada não a acordasse, que ela estava cansada e iria "dormir até morrer". O que de fato ocorreu.