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Chico Science: entre a modernidade e a tradição
Herom Vargas*
28/12/2009 | 07:15
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Poucos artistas destacam-se, dentro do diversificado cenário da música popular brasileira, com composições e atitudes criativas sem vincular- se diretamente às fórmulas padronizadas da canção de sucesso. Um exemplo foi o pernambucano Chico Science, que nos anos 1990 misturou gêneros tradicionais e modernos, como o maracatu e o rock, no grupo Chico Science & Nação Zumbi. Junto com outros grupos e músicos de Recife, criaram o manguebeat, importante movimento cultural que trouxe atitudes e estéticas renovadoras para a música de Pernambuco e do Brasil.

Há canções do grupo que incorporam em sua estrutura de linguagem várias informações culturais e, por isso, adquirem grande importância. Nelas, um ouvido atento pode observar detalhes da vida, da sociedade e da cultura indicados em sons e palavras peculiares. São de um tipo de compositor que consegue tratar de temas complexos de maneira simples, ou que revela grandes questões dentro de situações aparentemente corriqueiras.

TRADIÇÃO E INFLUÊNCIA - Chico Science - nome artístico do cantor e compositor Francisco de Assis França, nascido em Olinda (PE) em 1966 - foi o principal mentor do manguebeat, importante movimento cultural surgido no Recife nos anos 1990. Seu grupo musical, Chico Science & Nação Zumbi, surgiu a partir do interesse de Science em aproveitar a intensidade da percussão do maracatu e adaptá-la à sonoridade das guitarras distorcidas do rock e à rítmica peculiar do rap e da soul music norte-americanos.

A ideia de novos grupos como o de Science era produzir uma música popular de caráter experimental, mesclando as informações poéticas e musicais dos gêneros tradicionais locais com as novidades do cenário musical da época (heavy metal, rap, sampler e outros gêneros). A intenção é fugir tanto da erudição hermética e nacionalista, que vinha do movimento armorial dos anos 1970, liderado pelo escritor Ariano Suassuna, em Recife, quanto da pressão dos sucessos trazidos do Sudeste pelo rádio, pela televisão e pelas gravadoras.

Entre as várias referências culturais do grupo, a principal era o maracatu, um folguedo típico do Pernambuco folclórico vinculado ao Recife. Os maracatus são agremiações populares que desfilam nas ruas, no Carnaval, com enredos que comemoram a coroação de um rei e de uma rainha negros, embalados pela música de forte ritmo sincopado.

No disco Da lama ao caos, de 1994, a faixa Maracatu de tiro certeiro exibe a relação com os elementos desse folguedo no título e na percussão. A música começa com o toque do gonguê e de um berimbau. Depois entram a caixa e três alfaias (tambores do maracatu), construindo uma base rítmica sincopada para a guitarra distorcida e o baixo de registro grave. A bateria (instrumento de forte presença no rock) é substituída por outras percussões, e essa seção rítmica de grande intensidade sonora interage com guitarra e baixo, instrumentos típicos da linguagem roqueira. Esse diálogo sonoro inusitado associa distintas estruturas rítmicas, mistura alguns de seus elementos e pulveriza diferenças entre ambas as formas musicais afro-americanas (maracatu e rock).

MARACATU UNIDO AO ROCK - A eficiência dessa junção está principalmente na força acústica do maracatu, que se aproxima do alto volume dos instrumentos encontrados no rock. A pouco percebida ausência da bateria é compensada pelo baque virado das alfaias. A rigor, ambos - maracatu e rock - aproximam- se, pois suas origens estão ligadas às tradições musicais afro-americanas baseadas no ritmo.

O próprio rock, representado nas canções do grupo, entre outros, pelos timbres da guitarra e do baixo, ganha outras nuances a partir da percussão, sobretudo pela síncope típica do maracatu, e que não existe, na mesma forma, no gênero estrangeiro. Não se trata de simplesmente usar os tambores, mas de alterar os padrões de um gênero em função de outro. O grupo não faz maracatu, nem rock. Ao contrário, cria texturas sonoras inéditas, respeitando, ao mesmo tempo, ambas as tradições.

As composições de Chico Science e de outros componentes do grupo são importantes pela característica híbrida de seu processo criativo e por terem reorganizado gêneros e formas musicais em novas estruturas. A força da aproximação entre o tradicional e o moderno não está simplesmente no estranhamento que provoca. Esse vigor apresenta-se no exercício experimental do grupo, que procurou manter e ressaltar uma característica fundamental da música popular brasileira: a capacidade de fundir polos culturais distantes em busca de sínteses inovadoras.

*Programa de Mestrado em Comunicação, USCS (Universidade Municipal de São Caetano do Sul), e Umesp (Faculdade de Comunicação, Universidade Metodista de São Paulo)




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