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Literaturas africanas de língua portuguesa
Ricardo Lísias
Especial para o Diário
23/08/2007 | 12:14
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A relação entre a literatura brasileira e as literaturas praticadas nos países africanos de língua portuguesa será o tema do segundo encontro dos Seminários avançados sobre as literaturas africanas de língua portuguesa. De fato, mesmo antes das lutas de independência, o Brasil sempre foi considerado uma espécie de nação amiga dos povos africanos, muito provavelmente por causa da enorme quantidade de descendentes de africanos que vivem aqui. Além disso, não é preciso ir muito longe para observar que o sincretismo cultural é muito mais intenso entre nós do que em Portugal. No caso, também, o Brasil nunca viveu nenhum tipo de confronto com os países africanos, como é o caso de Portugal, que protagonizou, por exemplo em Angola, uma violentíssima guerra contra a libertação do território.

A poesia africana, em boa parte, é constituída pela forte presença do elemento oral, o que a aproxima do momento heróico do modernismo brasileiro. Sem a menor sombra de dúvida, Manuel Bandeira foi uma leitura fundamental para os poetas de Angola e Moçambique. É preciso, no entanto, não exagerar na dose e observar também que a lírica africana de língua portuguesa adota a mistura de idiomas, fazendo o português conviver com dialetos locais, fortalecendo assim a imagem de que a língua portuguesa não é a única forma de expressão legítima na África. Ainda que o nosso modernismo, bem mais comedidamente, tenha lançado mão, por exemplo, de certo vocabulário de natureza indígena, a motivação era outra.

O choque com o elemento estrangeiro também está muito presente tanto na poesia do modernismo brasileiro quanto na lírica africana. No entanto, as maneiras de tratar o atrito são muito diferentes: aqui, inclusive como programa estético, o estrangeiro servia para deglutição e rearranjo no meio local; para a poesia africana, na maior parte das vezes ele é ameaçador e agente de deformação. O ritmo ágil, no entanto, cheio de coloquialidade e versos brancos e livres que esteve tão presente nas diversas fases da poesia brasileira a partir do modernismo é muito visível também na África. Por sua vez, a reflexão política é uma constante na poesia africana, coisa que nem de longe ocorre no Brasil, acostumado que é a aceitar todo tipo de manifestação na literatura, menos a de raiz política.

Já a prosa exige um pouco mais de cuidado quando o assunto é a comparação. Já foi bastante discutida a proximidade que há entre Guimarães Rosa e Mia Couto, tanto pelo trabalho cuidadoso com a linguagem quanto pela constante presença do elemento mítico nas duas obras. A aproximação é real. Mesmo assim, é preciso ficar claro que a presença de uma força mítica é bem mais forte nas sociedades africanas como um todo do que nas brasileiras. Ainda que tenha ficado conhecido, de um jeito muito duvidoso aliás, pelo adjetivo “universal”, Guimarães Rosa internalizou aspectos mitológicos de uma pequena região do Brasil, uma parte de Minas Gerais. Já Mia Couto transforma em matéria literária toda a tradição de um país, no caso Moçambique.

Enfim, a proximidade existe e será debatida no encontro do próximo sábado. No entanto, é preciso sublinhar que, por mais forte que seja o discurso da união, o diálogo com os países africanos nunca foi exatamente uma constante: prova disso é a enorme dificuldade que temos por aqui para encontrar a obra dos escritores africanos. No campo da política, ainda, nunca fomos verdadeiros aliados dos africanos, com quem, a propósito, temos uma enorme dívida. Assim, vale terminar com uma pergunta constrangedora e sempre escamoteada, mas que precisa ser feita: se os judeus receberam indenização pelo imenso sofrimento que lhes foi imposto durante a II Guerra Mundial, não deveria acontecer o mesmo com os africanos? Se o Brasil fosse tão amigo assim, discutiria isso de cara limpa...




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