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Forest Whitaker é matador competente de 'Ghost Dog'
Do Diário do Grande ABC
03/02/2000 | 15:38
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Um matador calmo, sistemático, sábio. Assim é o protagonista de "Ghost Dog" (Forest Whitaker) de Jim Jarmusch. Claro, inspirado em "Samurai", de Jean-Pierre Melville, este estrelado por Alain Delon. Melville é a precisao cinematográfica. Planos calculados, econômicos, tudo enxuto. Jarmusch também é minimalista, mas representa o multiculturalismo, a mistura racial e cognitiva, própria de quem foi o pai de todos os cineastas independentes. Mas, em que pese as diferenças de estilo e ênfase, as histórias seguem rumos muito parecidos.

Ghost Dog é o nome de um matador que vive numa cobertura em companhia dos seus pombos-correio. É por meio deles que se comunica com o mundo. Segue rigidamente um código de conduta herdado dos samurais. Segundo a antiga escrita japonesa, todo samurai deve obediência irrestrita ao seu senhor. No caso de Ghost Dog, a um capo a quem deve a vida. A trama é mínima, porque logo o caçador se torna caça e irá empregar todo o seu talento para escapar com vida. Pelo menos até o momento em que julgar que já nao vale mais a pena.

O resto é estilo. Jarmusch parece acreditar que o interesse cresce a um certo estranhamento. Por exemplo: cria contraponto entre práticas ultrapassadas e alta tecnologia. Em plena época da Internet, Whitaker, em vez de mandar um e-mail, envia um pombo-correio. Tem lá suas vantagens. Nao há hacker para interceptar a mensagem. Mas a incontinência intestinal dos bichos produz uma verdadeira inflaçao de adubo no quintal da casa de Ghost Dog. Este senhor antiquado é o mesmo que usa alta tecnologia para furtar os carros que usa em suas açoes. E seu armamento também é da pesada. Tao sofisticado quanto o do crime organizado brasileiro.

Humanizando assassinos - Outro contraste: o criminoso cruel sujeita-se ao velho "Bushido", o rígido e moralista código de honra dos antigos samurais. Parece mais uma tentativa de humanizar assassinos. Nao seria a primeira nem a última. A um artigo a respeitos de "O Poderoso Chefao", de Francis Ford Coppola, o escritor (e também crítico de cinema) Alberto Moravia deu o título de "No Fundo Eles Sao Bons". Uma ironia do grande escritor, que, como todos seus compatriotas, vivia exausto pelo crime organizado em seu país e nao tinha a menor paciência com a glamourizaçao da Máfia desenhada por Coppola, Marlon Brando, Al Pacino & Cia. Mesmo assim, reconhecia a qualidade do filme.

Há outros casos, como o Scorsese de "Os Bons Companheiros", e aqui entre nós, "Os Matadores", de Beto Brant. Todos eles humanizam gente que nao prima exatamente pelo respeito aos direitos humanos. Há outras coisas a ver em "Ghost Dog" e que o separam de "O Poderoso Chefao" e outros filmes do gênero gângster. Jarmusch trabalha exatamente no sentido de desconstruí-lo, como já fizera com Dead Man em relaçao ao faroeste. Subverte regras internas do formato, mostrando um profissional do crime competente, porém um tanto infantilizado, que acaba sucumbindo à sua total inadequaçao ao mundo em que vive.

Mas "Ghost Dog" nao é apenas isso. Divertido, envolvente, elegante, porém longe de ser um dos melhores trabalhos de Jarmusch, ainda assim traz a marca do seu diretor - um permanente elogio à diversidade cultural. O matador é um negro, que convive com ítalos-americanos e se entende muito bem com um sorveteiro antilhano que nao fala uma única palavra de inglês. Como Jarmusch tem dito com freqüência, a América é um melting pot cultural, um país formado de agregados de outros países, como aliás, é também o caso do Brasil.

Esse amor pela mistura racial aparece como força motriz de filmes tao diferentes como "Daunbailó", "Estranhos no Paraíso", "Uma Noite sobre a Terra", "Dead Man" e, claro, "Ghost Dog". Ao contrário dos anteriores, no entanto, "Ghost Dog" nao deixa de decepcionar, em especial pela maneira como Jarmusch conduz a história. A nao ser que se pense o cinema como exercício formalista em estado puro, o conteúdo e suas conseqüências também devem ter algum valor. Assim, o artificialismo do personagem criado salta à vista e impede que o espectador se identifique com ele de maneira mais completa. E isso a despeito da atuaçao de Whitaker, um ator talentoso - basta lembrar do seu Charlie Parker em "Bird", ou do ambíguo personagem de "Traídos pelo Desejo", de Neil Jordan.

É aquele tipo de filme que consegue divertir a platéia e tornar bem evidentes as suas qualidades, como se o seu diretor fizesse questao de sublinhar que nao faz parte da média, do mainstream comercial. No entanto, deixa um resto de insatisfaçao ao final. De Jim Jarmusch sempre se espera um algo a mais, que desta vez nao veio.




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