Cultura & Lazer Titulo De Glauber Rocha
Desdenhado na região, Deus e o Diabo na Terra do Sol completa 60 anos

Sem exibições no Grande ABC durante lançamento, estreia na Capital teve presença do News Seller, precursor do Diário, que publicou entrevista com autor

Renan Soares
11/08/2024 | 08:00
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Corisco busca sua redenção contra Antonio das Mortes no filme (FOTO: Reprodução)


“Até que o sertão vire mar, e o mar vire sertão”, proclamou Corisco, cangaceiro do bando de Lampião, ao vaqueiro Manuel, antes de seguir em sua missão de vingança contra o matador Antonio das Mortes. O diálogo é um dos mais marcantes de um dos clássicos do diretor brasileiro Glauber Rocha, o filme Deus e o Diabo na Terra do Sol, que completa 60 anos em 2024. Lançado em 10 de julho de 1964, no Rio de Janeiro, o filme foi desdenhado nos cinemas do Grande ABC em seu lançamento e posteriormente proibido de forma indireta pela ditadura militar, mas obteve cobertura do News Seller, precursor do Diário, com direito a entrevista com o autor da obra.

Um dos filmes mais icônicos do diretor, Deus e o Diabo na Terra do Sol mistura elementos de realismo, alegoria e cultura popular para narrar a história de Manuel (Geraldo Del Rey), um vaqueiro que, após matar seu patrão em um ato de desespero, foge com sua esposa Rosa (Yoná Magalhães) através do sertão nordestino, onde se encontra com figuras como o líder messiânico Sebastião (Lidio Silva) e o cangaceiro Corisco (Othon Bastos). O filme explora temas profundos como a opressão, a fé, a violência e a luta do homem contra as forças do destino e da injustiça.

Mesmo com a falta de exibição na região, o News Seller acompanhou, naquele ano, uma das primeiras exibições do filme na Capital, no fim de agosto, no já fechado Cine Windsor, sendo a obra o tema de uma reportagem vinculada no dia 6 de setembro, assinada por José Armando Pereira da Silva – que aponta um fim de sessão com o maior aplauso já visto por ele em um cinema – e por Enock Sacramento. A página traz o título Glauber fala sobre Deus e o Diabo, onde o próprio diretor relata ao jornal a ideia para a construção do filme, apontado como uma denúncia e crítica ao “fanatismo religioso no sertão brasileiro”.

“O filme nasceu de uma série de reportagens que andei fazendo por volta de 1959 e 1960, algumas publicadas em um jornal de Salvador. Nesta época os rascunhos de Deus e o Diabo chamavam-se A Ira de Deus e tratavam apenas de Corisco”, disse Glauber Rocha na época, ao News Seller. “Uma viagem na Europa, em 1962, nova visão do Brasil, origem polêmica do Cinema Novo, revisão do cinema destruíram os argumentos passados, mas da dissolução nasceu Deus e o Diabo na Terra do Sol, espectro que conseguiu forma em 1963, reescrito três vezes, com paciência da qual me julgava incapaz”.

EXIBIÇÕES

Apesar do relato do colaborador e do próprio diretor ao News Seller, não há registros de exibições do filme no Grande ABC em datas próximas à estreia. O professor Antonio de Andrade, mestre em Comunicação Social pela Universidade Metodista de São Paulo, tinha 18 anos na época do lançamento da película. O jovem de São Caetano teve de ir à Vila Prudente, na Capital, para ver a obra, já que as salas de exibição da região não tinham espaço para produções avaliadas por ele como “intelectualizadas”.

“Os dois principais cinemas de São Caetano eram o Vitória e o Max. Eu era um aficionado por filmes alternativos ou de arte, ou seja, filmes marcados por diretores, na verdade, autores, distanciados do estilo comercial do qual os industrializados e realizados em Hollywood eram predominantes”, diz. 

Já nos anos 1970, o cenário era parecido, com falta de cópias devido à censura da ditadura militar, Deus e o Diabo passou a ser exibido de forma clandestina. Heitor Capuzzo, 70 anos, professor de cinema aposentado, também de São Caetano, chegou a projetar, a muito custo, o filme, em 1978, mas também na Capital.

“A cópia que existia estava ligada à Fundação Getúlio Vargas, conseguiram em 16mm, mas não estava em um estado muito razoável, a projeção era péssima e o som muito distorcido”, diz Capuzzo, que ressalta a dificuldade de se passar o filme na região, já que até os donos de cinema tinham receio de anunciar sessões da obra. “(Na ditadura) era muito comum que filmes fossem recolhidos, e este apareceu em listas de interditados. Nunca foi oficialmente proibido pela censura, mas ninguém o exibia. Glauber, inclusive, foi para o exílio (em 1971)”, revela. 

Ele cita que, após a abertura política, na década de 1980, o acesso à obra passou a ser mais fácil.

No site da Cinemateca Brasileira constam certificados de censura federal datados de abril e julho de 1964, que colocam o filme como “Proibido para menores de 18 anos”. O regime militar foi instituído em 1° de abril daquele ano.

O DIRETOR

Glauber Rocha foi um cineasta, roteirista e crítico brasileiro e um dos principais expoentes do movimento conhecido como Cinema Novo. Nascido em 1939, em Vitória da Conquista, na Bahia, Glauber revolucionou o cinema brasileiro ao trazer uma abordagem estética e política, que buscava retratar a realidade social e os conflitos do Brasil de forma crua e poética. Seu trabalho como cineasta era marcado por uma forte crítica ao colonialismo, ao imperialismo e às injustiças sociais, misturando elementos de cultura popular com influências do surrealismo e do modernismo.

A filosofia de Glauber Rocha era encapsulada em sua famosa frase “uma câmera na mão e uma ideia na cabeça”, que sintetizava o espírito do Cinema Novo: produzir filmes de baixo orçamento, mas com alto teor crítico e artístico. Glauber defendia o cinema como uma ferramenta de transformação social e cultural, e sua obra influenciou profundamente gerações de cineastas no Brasil e no exterior. Ele acreditava em um cinema que fosse genuinamente brasileiro, rompendo com as fórmulas comerciais de Hollywood e expressando as complexidades e contradições do País.

Glauber criticava estúdios de São Bernardo

Os estúdios Vera Cruz, uma das mais importantes iniciativas do cinema brasileiro, fundados em 1949, em São Bernardo, foram avaliado pelo cineasta Glauber Rocha como “um gasto criminoso de dinheiro”. Inspirado nos grandes estúdios de Hollywood e na indústria cinematográfica europeia, especialmente a italiana, o local tinha como objetivo profissionalizar e elevar a qualidade técnica e artística, produzindo filmes com alto padrão de produção. “Na Vera Cruz havia burrice, autossuficiência e amadorismo”, dizia Glauber.

No texto Revisão crítica do cinema brasileiro, publicado em 1963, o cineasta aponta que a arte do espaço era cópia de grandes diretores americanos ou de todos com ligação com o expressionismo. “O que ficou da Vera-Cruz? Como mentalidade, a pior que se pudesse desejar para um país pobre como o Brasil. Como técnica, um efeito pernóstico que hoje não interessa aos jovens realizadores (...). Como produção, um gasto criminoso de dinheiro de filmes que foram espoliados pela Columbia Pictures – quem mais lucrou com a falência”.

Para o cineasta Diaulas Ullysses, autor do livro Cinemando por Aí!!! - Cine Caminhos das ações e realizadores de cinema da cidade de São Bernardo, que faz parte de uma coleção de memória do cinema/audiovisual do município, Glauber queria que o cinema brasileiro tivesse sua própria estrutura e criação e não fosse um remendo norte-americano com europeu. 

“Ele tinha uma bronca muito acentuada porque eram estúdios de gente rica. Ele achava tudo muito pasteurizado, como o cinema americano era na época: muito glamour e pouco pé no chão, poucas histórias que tinham a ver com o Brasil”, afirma.

Ulysses, porém, recorda a obra O Cangaceiro (1953), dirigido por Lima Barreto, que ganhou reconhecimento internacional ao vencer o prêmio de melhor filme de aventura no Festival de Cannes, e que tinha elementos brasileiros em sua composição. Apesar de seu impacto inicial e da qualidade das produções, os estúdios Vera Cruz enfrentaram dificuldades financeiras devido aos altos custos de produção e à falta de retorno comercial, encerrando suas atividades em 1954. 

O local, gerido pela Prefeitura de São Bernardo, foi espaço de gravações de filmes e programas de entretenimento de grandes emissoras nos últimos anos.

Diretor dá nome a ruas, mas não é reconhecido na região

Apesar de dar nomes a ruas em Santo André, Diadema e Mauá, Glauber Rocha não é conhecido por grande parte dos moradores. A equipe de reportagem visitou logradouros, conversou com cerca de 20 pessoas, e nenhuma delas sabia dizer quem foi o cineasta. “Moro aqui há pouco tempo”, “sou de outro município” ou “melhor pesquisar no Google” foram alguns dos comentários ouvidos nos locais.

Em Santo André, a via foi oficializada por meio da Lei 6.696/1.990, em 1990, assim como as demais ruas do Parque Marajoara, bairro onde a rua está localizada. Em consulta à legislação, consta que a oficialização das ruas foi uma iniciativa do Executivo, na gestão Celso Daniel. Segundo o Paço, a maioria das sugestões para a nomenclatura das ruas do bairro foi feita por escritores.

Em Diadema, a rua tinha como nome Passagem A, e está localizada no Loteamento Amapre I, no bairro Conceição, sendo denominada como Rua Glauber Rocha em 2001, por aprovação de lei ordinária, da autoria da vereadora Eliete Azevedo de Menezes, homenageando ainda outros cineastas.

Em Mauá, onde a via se chama Cineasta Glauber Rocha, na Vila Ana Maria, o Paço não deu mais informações sobre a data da mudança.




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