Setecidades Titulo Aporofobia
Região mantém arquitetura hostil e afasta pessoas dos espaços públicos

Lei Padre Júlio Lancellotti foi promulgada e tem como objetivo proibir ações do tipo; religioso diz que mecanismo é voltado para excluir população em situação de rua

Renan Soares
Especial para o Diário
Thainá Lana
Do Diário do Grande ABC
15/01/2023 | 01:58
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Claudinei Plaza/DGABC


Atualizada às 10h05

“É melhor dormir na terra do que nas pedras”, diz Isaías Marques da Silva, 35 anos, sobre a arquitetura hostil instalada embaixo de um viaduto em São Bernardo, onde vive atualmente. A realidade dele e de centenas de pessoas que enfrentam empecilhos para acessar espaços públicos deve mudar. Aprovada pelo Congresso Nacional, a Lei Padre Júlio Lancellotti foi promulgada no DOU (Diário Oficial da União) na última quarta-feira (11), e proíbe a instalação de estruturas, equipamentos ou materiais com objetivo de afastar pessoas. 

As cidades do Grande ABC ainda mantêm espaços de uso público com estruturas hostis para excluir a população. Na última semana, a reportagem percorreu três municípios da região e encontrou locais com pedras, pedregulhos e arcos de ferro. 

Em Santo André, dois pontos chamam à atenção: a parte inferior do Viaduto Engenheiro Luís Meira possui pedras por toda extensão, enquanto a mureta na entrada da agência do Bradesco, na Rua Bernardino de Campos, região Central, tem arcos de ferro de ponta a ponta. 

Em São Caetano, a arquitetura hostil é representada por vãos estrategicamente posicionados nos bancos localizados nos pontos de ônibus para impedir que pessoas possam deitar. Em São Bernardo é possível enxergar um mar de pedras embaixo dos elevados Estaiado Robert Kennedy e da Avenida Brigadeiro Faria Lima, próximo ao Viaduto Padre Fiorente Elena.

“Eles fazem isso para nos expulsar. Queremos um lugar mais seguro e ajeitado para descansar, mas com as pedras fica impossível”, desabafa Isaías, que mesmo com dificuldades busca abrigo no extenso concreto do local, próximo ao Terminal Ferrazópolis.

A nova norma recebe o nome de Júlio Lancellotti devido ao trabalho do padre, que há mais de 40 anos, atua junto à população em situação de rua. O religioso é coordenador da Pastoral do Povo de Rua na Capital e ganhou grande repercussão ao tentar tirar a marretadas as pedras instaladas debaixo de um viaduto na Zona Leste de São Paulo.

"A arquitetura hostil é uma forma de hostilizar e agredir principalmente a população em situação de rua. Fazem isso porque querem evitar que as pessoas fiquem nas proximidades e porque há a ausência de respostas do poder público ou de outras entidades no sentido de acolhimento. Ninguém vai preferir ficar debaixo de um viaduto se tiver um quarto para dormir”, disse o religioso e ativista. Atualmente, 1.485 pessoas vivem em situação de rua em cinco cidades da região – com exceção de São Caetano e Rio Grande da Serra que não informaram os dados. 

“Porém, este tipo de arquitetura também fere crianças e idosos. É um risco para qualquer outra pessoa, mas o objetivo principal é atingir a população em situação de rua. A arquitetura hostil é um dos sintomas mais visíveis da aporofobia (aversão a pobres)”, afirma o padre.

Em dezembro de 2021, Júlio Lancellotti denunciou, através do seu instagram, a instalação de pedras em frente à paróquia Sant’Anna, de Ribeirão Pires. Após repercussão da denúncia, a paróquia retirou as pedras. Procurada pelo Diário na época, a Diocese de Santo André, responsável pelas paróquias das sete cidades, afirmou que o motivo da colocação foi evitar o estacionamento de carros de clientes de um bar próximo. 

ESPAÇOS PRIVADOS

A lei publicada no DOU não abrange a proibição de construções hostis em espaços privados, mas veda o emprego deste tipo de arquitetura em espaços livres de uso público. Ou seja, entrada de comércios, agências bancárias e igrejas, por exemplo, não devem ter sua arquitetura voltada para evitar seu uso. Nesses locais é comum a instalação de pedras e estruturas de metal para impedir que pessoas em situação de rua se abriguem. 

A agência bancária do Bradesco na rua Bernardino de Campos, 241, região central de Santo André, possui arcos de ferro instalados na parte exterior do local (veja foto ao lado). As pequenas estruturas metálicas impedem que a população possa se sentar ou deitar no local. 

A advogada e especialista em relações étnico raciais, Lazara Carvalho, ressalta que as calçadas fazem parte, por lei, de espaços públicos. “Muitas lojas e estabelecimentos se utilizam de arquitetura hostil em espaços que não são de sua propriedade por serem parte do acesso”, disse. 

Sérgio Murilo Alves, 59, vive em situação de rua há mais de 10 anos e procura fachadas de estabelecimentos comerciais como a do Bradesco para se abrigar, por conta da proteção contra ventos e chuvas. 

“Acho esse tipo de coisa (arquitetura hostil) totalmente errônea. Às vezes vejo crianças prendendo o pé ou tropeçando enquanto tentam brincar. Já tive que mudar de lugar várias vezes, é como encontrar barreiras”, diz Alves. 

JUSTIFICATIVAS

As prefeituras de Santo André e São Bernardo informaram que a instalação das estruturas não foi executada nas atuais gestões. Porém, ambas não estipularam um prazo para a retirada da arquitetura hostil. “Destacamos que esta gestão não compactua com estes procedimentos”, disse o Paço andreense. Já o Executivo são-bernardense destacou os serviços de assistência social e acolhimento para população de rua do município. Procuradas, a Prefeitura de São Caetano e o Banco Bradesco não retornaram os questionamentos do Diário até o fechamento desta edição.

Lei contra exclusão avança, mas precisa de regulamentação

O professor do curso de Planejamento Territorial da UFABC (Universidade Federal do ABC) André Pasti explica que a arquitetura hostil existe em muitas partes do mundo e corresponde a uma tendência de um urbanismo excludente. Segundo o especialista, a prática parte de uma ideia de planejamento e construção de cidades voltada para consumidores e não para cidadãos.

“Se ao invés de pensarmos a cidade apenas como uma vitrine de negócios, pensar também como espaço para a vida, vamos planejar municípios que olhem e cuidem dos mais vulneráveis”, diz Pasti, que afirma que o uso de recursos públicos para produzir arquitetura hostil deveria ser proibido.

Para a advogada e especialista em relações étnico raciais Lazara Carvalho, mesmo com a proibição de construções e instalações hostis amparada pela Lei Padre Júlio Lancellotti, promulgada na última semana, a legislação ainda precisa ser regulamentada. 

“A lei certamente passará por essa regulamentação, que vai estipular quais as punições em caso de descumprimento, bem como os departamentos que ficarão responsáveis pela fiscalização”, afirma a advogada. A especialista ressalta ainda que a norma passará por lapidação e aperfeiçoamento, assim como outros exemplos de caráter constitucional e de direitos humanos, como a Lei Maria da Penha.

“Isso (o funcionamento da lei) vai depender de nós, por isso temos feito muitas mobilizações. A lei sozinha não faz nenhuma mudança, temos que lutar para que ela seja aplicada. A legislação escrita fica no papel, e vai depender das pessoas utilizarem como ferramenta. Já temos conversado com vários juristas e com o próprio MP (Ministério Público) para fazer a retirada das estruturas (nos locais em que ainda possuem)”, afirma o padre Júlio Lancellotti, que dá nome a lei.




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