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Tridimensionalizando
William Shakespeare

A Cia da Matilde, de São Caetano, produzirá todas as 39
peças do dramaturgo inglês em um período de dez anos

Thiago Mariano
Do Diário do Grande ABC
03/06/2012 | 08:21
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A sede da Cia da Matilde, em São Caetano, está prestes a vivenciar um momento sem precedente no teatro brasileiro - em quantidade e qualidade. Em parceria com o Escritório das Artes e a SE4 Produções, o grupo dá largada ao "Projeto 39 Shakespeare", que prevê a encenação de todas as peças do escritor inglês nos próximos dez anos. 

A previsão é de que 5.000 pessoas participem do processo, que será concentrado no espaço são-caetanense. A estreia será com "Ricardo III", em outubro, na Capital. Leonardo Brício protagonizará a peça, que conta com direção de Marco Antônio Rodrigues.

O projeto foi bolado durante a montagem de "A Tempestade", no ano passado. Embora seja comum na Inglaterra que anualmente todas as peças do dramaturgo sejam encenadas, a realização é inédita por aqui.

"Achamos que ouviríamos muita gente dizendo ‘vocês estão loucos', mas foi o contrário. As nossas caixas de e-mail encheram de currículos, recebemos ligação de atores renomados querendo participar. Conseguimos inverter o jogo, porque somos sempre nós que corremos atrás de nomes respeitados, de gente que está na mídia, para conseguir levantar uma peça. As pessoas estão se propondo a participar", conta Erike Busoni, presidente da Matilde, supervisor de produção do projeto ao lado do produtor Alexandre Brazil.

A leva inicial de diretores já está definida. A segunda peça, "Romeu e Julieta", sob direção do são-caetanense Vladimir Capella, estreia em 2013. André Garolli relê "Troilo & Créssida" - inédita no País -, com Maria Fernanda Cândido como Helena, no mesmo ano.

Cacá Rosset e Aderbal Freire-Filho serão os próximos, em 2014. Rosset pensa em montar "As Alegres Comadres de Windsor" ou "Noites de Reis" e Freire-Filho cogitou dar sua leitura a "Timon de Atenas".

"O projeto é em torno de um autor que não é só responsável por grandes peças, mas referência na dramaturgia ocidental da pós-renascença. O teatro é feito pelos gregos, russos, Brecht e a gente agora, além de Shakespeare, que inventou coisas que perduram no formato teatral até agora, como criação, pensamento e forma de lidar com o público", acredita Brazil.

"Lançar um olhar latino sobre essa produção é estimular que pessoas daqui possam se juntar, desenvolver ações e trocar figurinhas sobre o trabalho dele", diz Busoni. "Isso pode virar a base da discussão para o segundo round das conversas sobre os temas shakesperianos", completa Brazil.

Para pensar e discutir o teatro

Depois de decidir montar todas as peças de Shakespeare, o primeiro trabalho que os produtores Alexandre Brazil e Erike Busoni tiveram para consolidar a ideia foi ir à base. Consultaram os mais renomados especialistas brasileiros."Fomos ao meio acadêmico falar com gente como Barbara Heliodora, Liana de Camargo Leão e José Roberto O'Shea. A Barbara acha que há espetáculos do Shakespeare que não são para brasileiros, mas ela mesmo disse: ‘Monte, que maravilha'", revela Brazil.

Busoni, que é presidente da Cia da Matilde, em São Caetano, lembra que os dois chegaram a ouvir de Walmor Chagas, quando lhe fizeram o convite para participar de "A Tempestade", que no Brasil não é possível montar Shakespeare.

A discussão fervilhou no campo das possibilidades. "Quais são as peças mais difíceis? Qual a alquimia de determinada peça? Graças a Deus há uma Barbara da vida, com a qual você chega a ponto de poder trocar ideias, perguntar: ‘e aqui, o que é melhor?'", diz Brazil.

O ato de produzir algo dessa magnitude também foi alvo de debate. "Precisamos conversar sobre o teatro estar devastado por conta da visão um pouco torta do financiamento para a arte. Não dá para um musical ter verba de R$ 12 milhões e às vezes termos uma peça do Shakespeare que não capta nem R$ 1 pela Lei Rouanet", considera Brazil.

"O problema de enfrentar um projeto desse é estrutura e grana. Hoje os grandes musicais estão garfando enorme fatia de patrocínio do mercado. Para o teatro, principalmente o comercial, tem as sobras. Já que conseguimos transformar a sede da Matilde e ela pode servir de base para o processo, e conseguimos agremiar pessoas legais, pensamos em concorrer de igual com os musicais com um projeto mais consolidado, com outro objetivo", fala Busoni.

Uma empresa já acena a possibilidade de patrocínio para as 39 montagens. A Secretaria de Cultura do Estado cedeu o Teatro Sérgio Cardoso para a estreia e se interessou pela proposta. Além do Proac (Programa de Ação Cultural), do Estado, a peça inicial, "Ricardo III", conta com apoio da Lei Rouanet, do Ministério da Cultura. 

LEVAS

Os dois primeiros anos, já com diretores definidos e peças quase que inteiramente escolhidas, serão primordiais para o projeto, conta os produtores. A ideia, além de levantar todos os textos do bardo inglês, é publicar os processos registrando os pensamentos criativos que conduzirão essa jornada.As próximas levas de peças e diretores serão definidas conforme o tempo for passando.

"Um projeto dessa natureza não é demagogia, vira algo público. As ideias são nossas enquanto estão dentro da nossa cabeça, depois que viram projeto, são públicas. O importante disso é, sobretudo, a possibilidade de chamar e conclamar as pessoas a participarem conosco dessa trajetória. Achar que Shakespeare é para a elite é um crime. É para nós todos, temos que buscar isso", acredita Brazil.

Adaptações serão criadas com rigor
Shakespeare clássico ou contemporâneo, não importa. A busca pela adaptação de seus textos passará por outros filtros nos processos de montagem do projeto de encenação de todas as suas peças."Existe uma relação que deve ser entendida: o Shakespeare literário, originalíssimo, e o Shakespeare para a cena de hoje. Acredito que sempre será uma adaptação, seja do inglês para o português ou seja da diferença de 400 anos da sua obra para hoje", considera o produtor Alexandre Brazil.

Liana de Camargo Leão, professora da Universidade Federal do Paraná e uma das principais pesquisadoras shakesperianas do País, pensa que a linguagem do dramaturgo inglês é algo que deve prevalecer nas remontagens dos seus textos. "A linguagem do verso e a poética são importantes em Shakespeare porque elas permitem que o espectador julgue e veja seus personagens por si mesmo", diz Liana.

Como exemplo, ela cita o personagem Caliban de "A Tempestade". "É um personagem descrito como monstro e como malvado pelos outros, mas quando ele fala, em versos, suas falas são as mais bonitas do texto."São pelas sutilidades na prosa e na carpintaria de Shakespeare que Alexandre Brazil pretende pensar com calma as traduções. "Há de se tomar cuidado nesse ponto. É preciso entender a engrenagem e, consequentemente, todas as peças. Quando você entende o processo da metáfora que ele propõe, maravilha." 

Para Liana, a busca da essência do sentido da prosa independe do contexto. "É como no filme "Ricardo III", com Ian McKellen, contextualizado no período nazista. O cerne da linguagem de Shakespeare é inteiramente preservado, só a montagem foi mudada." A crítica, por parte da pesquisadora, vai para quem deseja verter o bardo inglês para a contemporaneidade pela linguagem. "Muitos se acham na obrigação de mudar a linguagem pensando que o aproximarão do nosso século. Essa premissa não funciona. Alguns diretores têm certa dificuldade com o verso", cutuca."Não existe a busca pelo originalíssimo no projeto. Claro que haverá peças mais originais e outras um pouco mais adaptadas, mais despreendidas", conta Brazil.

ARTISTA POPULAR
Erroneamente tachado por muitos como dramaturgo para elite, Shakespeare será tratado nesse projeto como o artista popular que sempre foi. "Um artista da sua magnitude e popularidade deve ser visto por todos", acredita o produtor. "Ele não é considerado popular porque se você for ler, é uma leitura longa, tem todas as dificuldades de um texto dramático. É uma leitura que só quem trabalha com teatro sabe fazer. Ele escreveu suas peças para serem encenadas, não para serem publicadas em forma de livro", pensa Liana. "Precisamos de montagens boas que façam seu texto viver no palco, que é o seu lugar. Ele é um clássico, mas que pode ser nosso contemporâneo", completa a pesquisadora.

Artistas colaborarão na formatação das peças
As únicas linhas que definirão a criação das 39 peças de Shakespeare no projeto são a pesquisa e o diálogo. "Serão 39 diferentes processos incríveis também do pontos de vista do aprimoramento de troca artística. A visão numerosa do elenco e da direção das obras de Shakespeare refletirá em um momento incalculável para o teatro brasileiro", diz o produtor Alexandre Brazil.

A alegoria de 800 personagens em quase quatro dezenas de textos partirá do ponto de vista dos diretores e das conversas entre o grupo de atores e especialistas. Inicialmente, os diretores convidados escolhem a obra que desejam dirigir. "A força de ação é dialogar linguagens. Foi algo que Aderbal Freire-Filho, por exemplo, recebeu com prazer, disse que estava com saudade de falar de linguagem", conta Brazil.Além de Freire-Filho, Marco Antônio Rodrigues, Vladimir Capella, Cacá Rosset e André Garolli estão na primeira fase do projeto. Leonardo Brício, como Ricardo III, e Maria Fernanda Cândido, de Helena de Tróia em "Troilo & Créssida", estão entre os atores confirmados. Luiz Fernando Carvalho (de "Hoje É Dia de Maria") e Henrique Diaz estão na mira dos produtores, assim como o baiano Paulo Dourado. "A intenção é buscar gente de outras regiões, que tragam outros olhares e propostas", diz Erike Busoni, supervisor de produção.

Mas sem rigorosidade, pois eles também sabem que tudo se afunilará depois que boa parte dos diretores que toparem participar do projeto tiver escolhido sua montagem. "Pensamos também em convidar determinado diretor para determinada peça, abrir edital para que uma companhia dê sua proposta de encenação para algum dos espetáculos. Nada está imposto", completa Busoni.

À primeira vista, conversa e debate, o que os dois produtores gostaram foi a disposição dos envolvidos em dialogar sobre Shakespeare. "Não encontramos nenhuma vaidade entre as pessoas, ninguém disse ‘minha opinião é essa e pronto'. Todo mundo está querendo somar. É claro que cada um com os quais conversamos tem sua visão, mas ninguém a deu de maneira imperativa", comenta Brazil.

"A Barbara Heliodora, que apoia o projeto, poderia virar para a gente e dizer que quer que utilizemos suas traduções, mas ela não fez isso", exemplifica Busoni. Vladimir Capella, de São Caetano, será o segundo diretor da montagem. Sua escolha recaiu em "Romeu e Julieta", uma das maiores vitrines da obra shakesperiana. "Vai ser um casamento da minha visão de mundo, do meu tempo, com a história dele. Eu acho que só faz sentido montar se eu me misturar com Shakespeare."

Um dos pontos de partida para a criação, que envolve imersão nos estudos e nas obras do inglês, é a adaptação do cineasta italiano Franco Zeffirelli para o romance. "Quero puxar para o lado clássico, lúdico e fantasioso. E fazer algo para os jovens", fala Capella. Para ele, o projeto versa sobre muito mais do que apenas Shakespeare. "É um projeto lindo e corajoso. Uma mostra não só de Shakespeare, mas também um painel da criação e do pensamento dos diretores que temos no Brasil."




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