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Scliar, Verissimo e anônimos escrevem conto na Internet
Do Diário do Grande ABC
03/12/1999 | 16:38
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Pouco mais de 20 anos depois da publicaçao coletiva "Pega Pra Kapput", o reencontro de Moacyr Scliar e Luis Fernando Verissimo ocorre de forma um tanto estranha. Pela Internet. O primeiro, quando muito, passa 30 minutos na rede, apenas para checar seus e-mails. O segundo, entao, passa longe: continua na era do fax e da máquina de escrever. Mesmo assim, aceitaram, de prontidao, o convite da editora Companhia das Letras e do site Submarino, especializado no comércio eletrônico de livros, CDs e brinquedos para escrever um conto com os internautas.

O editor geral do site, Joao Wady Cury, comenta que a escolha desses escritores tem origem no livro, numa tentativa de repetir "seu jeito rápido e rasteiro de contar uma história desvairada". Scliar começa a história, Verissimo termina. Um homem de meia-idade chega a uma cidade deserta e caminha até uma casa abandonada. Abre a porta. "Afora o monótono ruído da chuva o silêncio era completo, sepulcral. Tirou do bolso da capa uma lanterna e acendeu-a. Percorreu um comprido corredor e chegou ao aposento dos fundos, cuja porta estava fechada. (...) Num gesto brusco, a abriu. (...) O homem dirigiu-se ao armário do fundo, abriu-o. Pousou a lanterna no chao, abriu a maleta, tirou dali uma chave de fenda e pôs-se a trabalhar. Depois de minutos, conseguiu: o fundo do armário - que era falso - soltou-se. Oh, Deus, murmurou o homem".

Em breves palavras, Scliar deixa marcas de seu inconfundível estilo de contista. Cria uma fábula envolvente, uma narrativa vagarosa e meticulosa. "Admiro a capacidade de síntese das parábolas bíblicas", diz. E, ainda, segue à risca o preceito número um de "Pega Pra Kapput", escrito também por José Guimaraes e Edgar Vasquez: "Sabotai o próximo".

A vítima foi Ciro Callegaro, um internauta que, aos 17 anos, desbancou outros 650. Seu trecho foi selecionado por uma comissao formada, na primeira triagem, pelos editores do Submarino, Cury, Alessandro Greco e Rodrigo Squizato e, depois, pelo editor executivo dos Cadernos de Literatura Brasileira, Rinaldo Gama, e pelo jornalista Hamilton dos Santos, da Abril.

A pouca idade de Callegaro nao surpreendeu Scliar. "Uma vez, pesquisei com quantos anos começaram a produzir romancistas e contistas famosos", lembra. "A vida de um romancista começa tardia, diferente do conto, que é prematuro, um gênero é herdeiro das histórias que a criança ouve ou inventa", reflete.

Callegaro manteve o pleno domínio das palavras de Scliar. "Vagarosamente retirou a tampa que lacrara, por tanto tempo, a prova e o motivo do seu crime. Uma pequena caixa de madeira apodrecida e um velho saco de pano eram todo o conteúdo do fundo falso daquele armário", começa. A medida que a abria, sua respiraçao tornava-se mais ofegante, até que viu os diamantes. "O tempo havia apagado sua culpa, destruído suas roupas e seu passado, mas nao a sua memória. Ainda se lembrava do dia em que os escondera, após calorosa discussao e troca de ofensas, que o levara a matar seu pai". Escondeu-os em sua velha bota e dirigiu-se à rodoviária, onde passaria o resto da noite, pois o próximo ônibus só passaria às 7h45. "O que poderia acontecer comigo? - perguntou-se, tentando se encher de falsa coragem".

Passa a vez para Paulo R. C. Lara, vencedor da terceira etapa dentre 900 concorrentes. Lara descreve momentos aflitivos: "Imerso em seus pensamentos, o homem mal percebeu a sombra que acabava de se instalar na outra mesa e só tomou conhecimento de sua presença quando sentiu o desconforto daquele olhar que o fixava atentamente. Com o canto dos olhos ele percebia que o visitante nao desviava a atençao. Simples coincidência, pensou. Até que, ao passar pela outra mesa, sentiu uma mao firme segurar seu braço e virou-se bruscamente, fixando o olhar do visitante que disse, impositivo e irônico: "Vai sair sem falar com os velhos amigos?".

Esse é o primeiro conto interativo brasileiro. Poucos sao os casos em que escritores sentam-se para escrever em parceria. "A literatura é um ofício eminentemente solitário", justifica Scliar, autor de 48 livros, que carrega a mesma sensaçao de quando era médico. "Quando assistia a um parto, o obstetra dizia: Ainda há alguma coisa lá dentro", compara. A quarta etapa termina neste sábado, às 15 horas. Corra que você ainda pode ganhar R$ 500 em compras no site e ter seu nome publicado ao lado de grandes escritores. Ah, Verissimo ainda nao leu nada do conto.




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