Ex-presidente da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), médico sanitarista e professor da FSP-USP (Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo), Gonzalo Vecina Neto afirma que o Brasil poderia ter combatido melhor a pandemia de Covid-19 e conseguido maior número de pessoas vacinadas contra a doença. Para o médico, o maior problema do País foi a falta de gestão adequada por parte do Ministério da Saúde. Vecina também alerta que outras pandemias como a do novo coronavírus podem surgir, devido ao ataque do homem à natureza e ao meio ambiente.
Raio-x
Nome: Gonzalo Vecina Neto
Estado civil: viúvo
Idade: 67 anos
Local de nascimento: Sorocaba, no Interior, e mora em São Paulo
Formação: médico
Hobby: jogar xadrez
Local predileto: São Francisco Xavier, Interior de São Paulo
Livro que recomenda: Thomas Hager, Dez Drogas
Artista que marcou sua vida: Charles Chaplin
Profissão: médico e professor
Onde trabalha: na Faculdade de Saúde Pública da USP e na FGV
O Brasil começou a imunização há mais um mês e alcançou cobertura vacinal menor do que 3%. Isso já era esperado ou estamos aquém do que poderíamos fazer, considerando nossa expertise em campanhas vacinais?
Isso era esperado porque tivemos um número de vacinas muito pequeno, não tinha como fazer milagre de vacinar mais gente com o que nós recebemos. Butantan e Fiocruz, que são os dois provedores de vacina na realidade brasileira, tiveram inclusive um problema de fornecimento de matéria-prima por parte da China. Então, está dentro do esperado, por conta da dificuldade de obter a matéria-prima ou a vacina já envasada, essa era a primeira possibilidade.
O Ministério da Saúde resolveu adquirir vacinas de outros fabricantes, como Janssen e Pfizer, após passar bom tempo contando apenas com a de Oxford. Se isto tivesse sido feito antes, a oferta de vacinas e a cobertura vacinal hoje poderiam ser maiores?
Veja, o Chile começou a comprar vacina em setembro. Fiocruz e Butantan fizeram suas compras em maio. O Ministério da Saúde procurar vacina para comprar em janeiro é um crime. Não tem nome o que o Ministério da Saúde está fazendo. Não vão encontrar vacina, e se tivessem encontrado seria ótimo para nós, teríamos mais vacinas para a população. Com as vacinas compradas pelo Butantan e pela Fiocruz, nós vamos conseguir vacinar a população toda talvez só em janeiro de 2022. Se nós tivéssemos comprado logo vacinas da Janssen, da Pfizer, dessas outras fábricas, teríamos condições de terminar de vacinar a população antes. Mas o ministério foi incompetente, uma má gestão danada e não saiu atrás de comprar vacinas.
O Brasil teve tempo para se preparar, enquanto observava a pandemia avançar na Europa. Quais foram as principais falhas?
A principal falha foi a falta de governo. O Brasil é um País federativo, com Estados e governo federal. O governo federal deve coordenar todos os Estados e é dessa forma que o sistema de saúde brasileiro está estruturado. O Ministério da Saúde não é um assistente da gestão do SUS (Sistema Único de Saúde), ele é fundamental e responsável por 50% do financiamento do SUS. Praticamente não tem serviços próprios, fora alguns institutos de pesquisa. Então, o que o Ministério da Saúde tinha que fazer? Coordenar (o combate à pandemia). Essa falta de coordenação foi desastrosa e é parte da explicação do que aconteceu em Manaus, do que aconteceu no Pará, no Nordeste, do que está acontecendo agora no Rio de Janeiro e demais Estados, da falta de vacinas, da falta de testes. O Ministério da Saúde não proveu a quantidade de testes necessários, comprou testes errados e está jogando na lata do lixo porque não conseguiu utilizar. O Ministério da Saúde foi um desastre e esse foi o maior problema para enfrentar a pandemia, a incapacidade gerencial do Ministério da Saúde.
Especificamente sobre o plano de imunização, quais são as principais falhas?
Acho que a própria logística do ministério falhou na distribuição da vacina, falhou na identificação dos grupos de risco, publicou quem era e depois teve que corrigir, incluiu diversas categorias. Tem problemas de comunicação, além do que demorou e não sei se já preparou software adequado para acompanhar o processo de vacinação em todos os postos de saúde. Não houve processo de capacitação dos enfermeiros que aplicam vacinas. Todo ano tem que haver o processo de capacitação. Estamos falando de vacinas diferentes, que têm reações diferentes, formas de retirar do vidrinho diferentes e o Ministério da Saúde não promoveu capacitação de pessoa. O ministério conseguiu cometer muitos erros.
Já estão sendo identificados subtipos do vírus, da mutação registrada em Manaus, em pacientes do Estado de São Paulo que não estiveram no Norte do País nem tiveram contato com pessoas dessa região. Como isso é possível?
Alguém de lá chegou aqui, não tem outro jeito, não tem outra saída. Não veio pelo ar, (o vírus) não atravessa tão grandes distâncias assim. Alguém infectado veio para cá e e isso começou a partir de pessoas infectadas que chegaram a São Paulo. Não tem outro jeito, não tem milagre, não tem fantasia ou magia que dê conta.
Esses subtipos podem ser responsáveis por uma nova onda de infecções?
Esses subtipos podem incrementar a onda atual, por enquanto, porque eles ainda são do mesmo tipo, apenas são mais infectantes. Eles podem acelerar (o contágio da) a doença.
Se a transmissão comunitária de subtipos se intensificar, pode haver comprometimento da rede de saúde do Brasil de maneira generalizada?
Pode, porque se aumenta muito o número de casos, a rede vai colapsar e já está colapsando em diversas cidades. E isso é muito perigoso.
Qual o papel de uma agência como a Anvisa diante de uma ameaça mundial como a Covid-19?
O principal papel da Anvisa é aprovar medicamentos que sejam eficazes e seguros e, particularmente, as vacinas. Mas também falar da proibição de produtos que não servem para a doença, com uso não oficial, essa é uma coisa importante também. Fazer o acompanhamento das novas cepas, que embora seja uma tarefa mais da vigilância epidemiológica, a vigilância sanitária pode ajudar também. Tem lá o laboratório do INCQS (Instituto Nacional de Controle da Qualidade em Saúde) do Rio de Janeiro, então, a vigilância sanitária é muito importante nessas horas em relação a essas atividades de acompanhamento desses medicamentos que são fundamentais para o controle da doença, como no caso das vacinas. Tem que ser rápida, adequadamente correta nas análises para que a gente tenha acesso às vacinas.
A Anvisa tem sofrido forte pressão política para aprovar a vacina russa Sputnik V. Como fundador da agência, como o senhor analisa essa situação?
É um equívoco de quem está pressionando a agência para fazer a aprovação da vacina. Tem um conjunto de regras que serviu para aprovar a vacina da Sinovac, da Aztrazeneca e a da Pfizer. Por que não serve para vacina da Rússia? Qual é o problema? É que a Rússia não está oferecendo os dados. Custa oferecer os dados? Ah, não tem os dados. Se não tem os dados não dá para aprovar. Se ela diz que tem a fase três, publicou os dados da fase três na Lancet, pega os dados e entrega para a Anvisa. Se não está entregando é porque está escondendo alguma coisa. Essa é a questão que temos que discutir. É inaceitável que isso esteja acontecendo com a vacina da Rússia. Se eles entregarem os dados vamos aprovar. Agora, se eles não entregarem os dados, não tem como aprovar a vacina. Não tem como, esse monte de político, governador, ficar falando bobagem do jeito que estão falando. Vamos aprovar a vacina se os dados forem oferecidos. Se não, não vamos aprovar vacina nenhuma e a agência está absolutamente correta na forma como está se comportando.
O senhor também participou das discussões que resultaram na criação do SUS (Sistema Único de Saúde). A experiência da pandemia tem potencial para transformar o SUS?
O Congresso estava discutindo a possibilidade da desvinculação de receitas, que queria acabar com o piso de aplicação de dinheiro na saúde e educação. Esses caras podem destruir o SUS com isso. Quando estamos discutindo que o SUS seja perenizado, esses caras estão querendo destruir o SUS. Nessa pandemia, eu esperaria que a gente aprendesse o valor que tem o SUS, que ele se mantivesse, porque foi fundamental para o nosso País. E o que está acontecendo? O Congresso estava querendo acabar com ele. Era isso que o governo estava propondo, “vamos exterminar com o que está funcionando no Brasil”. No Brasil só pode ter coisa que não funciona. Foi a proposta enviada ao Congresso, através de uma emenda constitucional, feita pelo governo (do presidente Jair) Bolsonaro e do (ministro da Economia, Paulo) Guedes. Esses querem acabar com o SUS.
A que interesses a eliminação do SUS atende?
A interesses financeiros. Recursos que são investidos no SUS seriam destinados a áreas onde rende mais dinheiro. Só isso pode explicar a vontade deste governo neoliberal. Querem pegar o dinheiro da saúde e da educação e colocar para fazer renda, para pagar juros para alguém, só assim consigo explicar, não tem outra explicação.
Quando houve a crise do oxigênio em Manaus, médicos afirmaram que pacientes que fizeram uso do chamado ‘tratamento precoce para Covid’ com hidroxicloroquina tiveram seu estado de saúde agravado. De que forma a propagação de medidas sem eficácia científica impacta no controle da pandemia?
Quando você usa um medicamento que não vai produzir o efeito terapêutico esperado, não reduz os dias de internação, não ajuda na recuperação. A ivermectina é hepatotóxica. Já estamos tendo casos de pessoas que tomaram e precisaram de transplante de fígado. A hidroxicloroquina é cardiotóxica, 10% das pessoas que tomam vão ter arritmias que podem ser fatais. Isso é criminoso. Saiu publicado na grande imprensa um anúncio pago, divulgando esses medicamentos, e isso é um crime. Não é liberdade de expressão. É veiculação de notícias falsas. A grande imprensa aceitou publicar um anúncio de um grupo de médicos que garantem que eles funcionam, mas existem várias reportagens que desfazem ponto a ponto o que foi dito, explicando que o que eles propõem é mentira. Não é só mentira, causa efeitos colaterais, dá a sensação de segurança para pessoas que deveriam fazer uso de máscara, fazer o distanciamento. Temos que cobrar desses médicos, dos conselhos, com relação à divulgação dessas fake news.
O senhor acredita que em médio ou curto prazos há risco de outra pandemia?
Esta pandemia é fruto da agressão que nós fazemos ao meio ambiente. Fomos nós, os humanos, que expulsamos os morcegos de onde estavam e o vírus que habitava o morcego se viu pressionado, porque estava perdendo espaço, procurou um caminho e achou o caminho para chegar ao homem. Enquanto nós continuarmos destruindo o meio ambiente, pressionando os animais e toda forma de vida no meio ambiente, vamos ter sempre a possibilidade de algum micro-organismo desses tentar saltar para os homens. Por que temos gripe suína, gripe aviária? Porque estamos criando animais de forma muito violenta e essas formas de vida que vivem nesses animais querem se salvar, querem garantir a sua sobrevivência. É a agressão ao meio ambiente que alimenta essas pandemias. Essa não é a última, e vamos ter que lutar com muitas outras pandemias se continuarmos a agredir o meio ambiente desse jeito.
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