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Duvall critica religioes em 'O Apóstolo'
Do Diário do Grande ABC
21/01/1999 | 15:57
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A crítica norte-americana Pauline Kael, hoje aposentada, disse em entrevista que um dos poucos filmes interessantes que havia visto nos últimos tempos era "O Apóstolo", de Robert Duvall. Pauline limita-se ao âmbito do cinema norte- americano, o que nao é de espantar. Deixa de lado toda a experiência cinematográfica do resto do mundo e, mesmo assim, a avaliaçao tem lógica. Esse que é o terceiro longa-metragem dirigido por Duvall, muito mais conhecido como ator, é um filme que merece todo o respeito.

O próprio Duvall interpreta Eulis "Sonny" Davis, pastor que vive peregrinando por cidades texanas. Prega a palavra do Senhor com rara eloqüência. Um pescador de almas, mas, ao mesmo tempo, pastor de algumas ovelhas mais interessantes e desprevenidas. Em suma, um priápico, para desgosto de sua mulher, vivida por Farrah Fawcett.

A personagem de Farrah resolve servir ao marido malandro o próprio remédio amargo e acaba apaixonando-se por um religioso mais jovem. Eulis apela para a mais antiga das deusas humanas, a ignorância, comete um ato de violência e é obrigado a fugir. Procura reconstruir vida e vocaçao em outro canto do país. O filme trata dessa busca de redençao de um personagem complexo, contraditório, paradoxal. Será preciso fôlego de cineasta dos bons para manter vivo o interesse do público por esse tipo de trama.

Mais ainda porque Duvall usa uma maneira insólita para levar adiante sua narrativa. Quando o bom senso ordenaria que fosse sintético, opta pelo contrário. Faz com que todos os tempos se alonguem e se exercita no discurso barroco. A impressao é que tudo dura demais. A começar pelos sermoes do pregador. Duvall respeita um tempo que é o de assimilaçao da mensagem religiosa. Mais que isso, imprime ao seu discurso aquele tom hipnótico dos pregadores, que convencem à força de repetir, uma vez, outra e mais outra, as mesmas palavras, independentemente do seu conteúdo. Há uma música do sermao que funciona como um mantra para o fiel.

Em entrevistas, o dublê de cineasta e ator disse que simplesmente queria fazer um filme sobre as religioes protestantes, que fosse crítico, porém respeitoso, sem nunca mostrar-se submisso. Uma senhora tarefa, proeza equivalente a caminhar num fio de navalha. Há várias tentaçoes que poderiam acabar com as pretensoes de Duvall. Poderia ser respeitoso demais e perder o gume crítico por medo de reaçoes contrárias dos grupos religiosos. Poderia fazer o contrário e cair numa caricatura que terminaria por esterilizar a veia crítica. Felizmente, para ele e para o espectador, consegue manter-se isento e traçar um retrato fidedigno do seu personagem.

Eulis é um tipo humano e atormentado e como tal é registrado com objetividade. O cineasta parece interessado em compreender o fenômeno religioso. Mostra uma preocupaçao quase documental em mergulhar numa realidade que nao lhe é tao familiar e emergir dela mais informado do que estava no início.

Nao parece estranho quando se conhece a sua biografia. Duvall, antes de fazer esse filme de ficçao, foi documentarista e gosta do gênero. Seu primeiro longa chama-se "We're not the Jet Set "e acompanha detalhadamente uma família de fazendeiros. O segundo é "Angelo My Love" e descreve um grupo de ciganos, já incorporando na trama algum tratamento de ficçao.

Com "O Apóstolo" ele consegue uma boa síntese das duas linguagens. Fica perto do mundo do personagem para que possa entender nao apenas como alguém se torna um pastor que peca, mas também em que mundo isso se torna, mais que possível, quase inevitável. Distancia-se o suficiente para que aquele universo nao seja vendido como inevitável ou intrinsecamente bom ou mau. Enfim, trabalha naquela clássica dialética da aproximaçao, mas com um pé atrás, que está presente em qualquer filme do gênero que valha a pena.

A pirueta final é mostrar que, no fim das contas, a religiao nao é senao busca de sentido para a vida e consolo diante da morte inevitável. Spinoza dizia que o espaço teológico, aquele onde florescem as idéias de salvaçao e redençao, fica exatamente entre o temor e a esperança. Eulis, o pastor de Duvall, é o homem que domina essa sabedoria. Com a Bíblia surrada na mao e uma verve invejável, torna-se um genial camelô da fé. Detestável, mas como nao simpatizar com ele?




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