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Kung-Fusão é filme-caricatura
Cássio Gomes Neves
Do Diário do Grande ABC
15/07/2005 | 08:32
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Não há como falar da comédia Kung-Fusão sem mencionar as produções que têm o kung-fu como dado ou como cisco narrativo. Mesmo porque esse filme vindo de Hong Kong não existe independentemente a um contexto, não se justifica sem a existência prévia de um Matrix, de um As Panteras ou de um Kill Bill, filmes estes que importam as artes marciais para seus conteúdos, que as ocidentalizam - em outras palavras, as popularizam globalmente a ponto de torná-las uma espécie de modismo. E Kung-Fusão, que estréia nesta sexta-feira em duas salas da região, tem a sátira como meio e fim e persegue os filmes que coagulam as artes marciais como matéria-prima.

Até que medida Kung-Fusão é um filme pessoal? Uma coisa é certa: por trás desse filme-caricatura há a onipresença do diretor, roteirista e ator Stephen Chow. Aos 43 anos, o cineasta encontra-se altamente bem cotado no pega-pega do cinema internacional. Acumulou US$ 95 milhões de bilheteria em distintos pontos do planeta, garantiu a filmagem de um Kung-Fusão 2 com recursos hollywoodianos e foi recentemente eleito pela revista People um dos 50 solteiros mais cobiçados do mundo, ao lado de Orlando Bloom (Cruzada) e Hayden Christensen (Star Wars).

Chow vive o protagonista Sing, um pé-rapado cujo maior desejo é ingressar na Gangue dos Machados, bando de mafiosos que manda e desmanda num bairro periférico da China pré-revolução, lá pelos anos 40. Por ocasião de uma trapalhada sua, os bandidos vão tomar satisfações junto aos habitantes do beco Curral dos Porcos, um cortiço que faria o barraco da família de Feios, Sujos e Malvados, o clássico de Ettore Scola, parecer suíte do Hilton.

Em meio ao acerto de contas, a vilania armada de machadinhas é submetida a consecutivas surras, ministradas pelos habitantes do beco, mestres de kung-fu à paisana, disfarçados ou como ferreiros, ou como alfaiates, ou como a ultratabagista senhoria do beco e seu marido come-dorme.

Chow progride na sua irreverência ao decalcar em Kung-Fusão um raciocínio cartunesco, meio Looney Tunes meio mangá, em perseguições delirantes com pernas transformadas em hélices e capangas voando tal qual folhas nos céus do cortiço depois de uma sessão de pancadaria. Junto a isso, o diretor inclina-se a conduzir o anti-heroísmo ao absurdo e a bordar personagens com um posicionamento dramatúrgico paradoxal, quando não três-em-um: conforme a ocasião e a câmera de Chow, podem ser ao mesmo tempo vítimas, heróis e vilões.

É uma oscilação que só faz bem a Kung-Fusão; um exagero ético que encontra correspondência com os superfaturamentos estéticos de Chow. Outra característica que não deve ser ignorada é que a comédia constitui-se numa ironia interna, made in Hong Kong, dos filmes de kung-fu, que alude tanto aos ocidentais quanto aos caseiros - como O Tigre e o Dragão, de Ang Lee, e os exercícios de gravidade coreográfica de Zhang Yimou, casos de Herói e O Clã das Adagas Voadoras.

Kung-Fusão aponta para a mania da arte cinematográfica em se reciclar à velocidade de uma piscadela, com o objetivo único de garantir sua vaga na seara do entretenimento. Sua imperfeição é a de, enquanto sátira, ser efêmera e restrita a um gênero, diferentemente de Kill Bill, cuja menção se faz obrigatória. O filme em dois volumes de Quentin Tarantino também ironiza a composição da imagem do guerreiro como modelo indestrutível e incontestável da honra e da verdade. Mas Tarantino, classudo no momento de forjar seus referenciais, transita entre gêneros e sensações e realiza uma revisão da arte e da história centenária do cinema. Chow, ao contrário, focaliza um período determinado dessa história e arrisca-se a fazer um filme possivelmente tão passageiro quanto o objeto de sua crítica. Passageiro, sem dúvida, mas ainda assim bem-humorado.

KUNG-FUSÃO (Gong Fu, Hong Kong, 2004). Dir.: Stephen Chow. Com Stephen Chow, Wah Yuen, Qui Yuen, Chi Chung Lam, Hsiao Liang. Estréia nesta sexta-feira no Extra Anchieta 1, Central Plaza 4 e circuito




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