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Orlando Morando aciona ilustrador na Justiça

Prefeito de S.Bernardo entra com ação questionando charge feita por Fernandes e ameaçando processá-lo criminalmente por calúnia e difamação

Júnior Carvalho
Fábio Martins
06/08/2020 | 23:30
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Claudinei Plaza/DGABC


O prefeito de São Bernardo, Orlando Morando (PSDB), ingressou com ação judicial, na esfera criminal, com pedido de explicações contra o ilustrador do Diário Luiz Carlos Fernandes, por charge publicada pelo jornal no dia 19 de julho de 2020. O material faz menção à reportagem que revelou que empresa do tucano foi denunciada à PF (Polícia Federal) por comprar imóveis por quantias abaixo do valor venal. O artista vê tentativa de intimidação de Morando.

Incomodado por ter sido retratado em material jornalístico, o tucano pediu explicações nos tribunais a Fernandes e ameaçou processar o artista por calúnia e difamação. Nos autos, o prefeito argumenta que o cartunista o desenhou de maneira “jocosa”. Além da investida contra o cartunista, Morando ainda acionou judicialmente o editor de Política do Diário, Raphael Rocha, autor da reportagem. Foram citados pelo tucano o diretor de Redação, Evaldo Novelini, e o editor-chefe Wilson Moço. Entidades que representam a categoria veem cerceamento da profissão e repudiaram a atitude do prefeito de São Bernardo (leia mais abaixo).

Fernandes, que tem 40 anos de carreira, afirmou que a intenção da charge é de “criticar a postura do homem público” e que não foi alvo de processos nem no período da ditadura militar (1964-1985), época marcada pela perseguição a jornalistas e pela censura. “Eu vejo isso como intimidação mesmo. A charge não está ofendendo. Eu tenho o maior cuidado em não ofender pessoalmente ninguém. A ilustração não está pejorativa. Ele (Morando) é um homem público e o papel da imprensa é fiscalizar esses agentes”, contestou Fernandes, ao emendar que o objetivo da liberdade de imprensa e de expressão é de dar luz a possíveis atos ilegais cometidos por figuras públicas. “Eu ficaria constrangido se ele gostasse da charge e colocasse na parede.”

Publicado no dia 19, o desenho de Fernandes apresentava caricatura de Morando equipado com uma placa com os dizeres: “Compro terrenos. Dinheiro na hora”, em alusão ao fato de que a empresa do qual Morando é sócio, a OAC Participações (cujo antigo nome é Ponto Bom Participações), negociou terrenos e imóveis residenciais no Grande ABC por valores bem menores do que são avaliados. Segundo denúncia entregue à PF, as negociações servem para “ocultar enriquecimento ilícito” e, na visão de especialistas em direito imobiliário, embora não aparentem ilegalidades, as transações indicam investimentos imobiliários que “chamam atenção” pelo tamanho da vantagem financeira. Dos 17 imóveis listados na representação à PF comprados pela Ponto Bom, 13 estão localizados em São Bernardo, cidade governada pelo tucano.

Cartunista reconhecido, Fernandes atua no Diário desde 1983 e este é o primeiro processo do qual é vítima em quatro décadas de trabalho. Além de Morando, outros políticos das mais diferentes esferas do poder já foram retratados pelos traços do artista, que carrega diversos prêmios em seu currículo (leia mais abaixo).

Ao Diário, a assessoria de Morando alegou que os processos contra os profissionais do Diário “afastam-se completamente de qualquer intento de censura”. “O histórico do prefeito revela que sempre foi totalmente a favor da liberdade de imprensa, expressão e manifestação do pensamento. Porém, o ordenamento jurídico brasileiro também garante àquele que se sentiu ofendido em face de acusações infundadas a prerrogativa de buscar o Judiciário para salvaguardar seus direitos. A salvaguarda de direitos individuais em nada significa atentar contra a liberdade de imprensa como um direito público e absolutamente inalienável.”

Entidades e chargistas repudiam cerceamento

Entidades de classe e chargistas condenaram a atitude adotada pelo prefeito de São Bernardo, Orlando Morando (PSDB), classificando a postura do tucano como método de cerceamento de liberdade de expressão e de imprensa.

O Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Estado de São Paulo, por meio da regional ABCD, manifestou total apoio ao chargista Luiz Carlos Fernandes e Raphael Rocha, editor de Política. Secretário do Interior, José Eduardo de Souza afirmou que a “liberdade de expressão e do exercício da profissão é a máxima para o exercício do bom jornalismo”. “(A entidade) Repudia toda e qualquer atitude de cerceamento da profissão dos jornalistas e se coloca à disposição dos trabalhadores do Diário diante desta tentativa de intimidação do prefeito Orlando Morando.”

O dirigente da ACB (Associação dos Cartunistas do Brasil), José Alberto Lovetro, mais conhecido como Jal, sustentou que a entidade fará carta em desagravo a Fernandes. “Todo mundo que entra na área política sabe que será criticado, é do jogo democrático. A linguagem da charge, por natureza, é contestatória. O prefeito que não sabe entender isso está indo contra a própria ideia de ser prefeito”, disse. “Se ele vai contra, seus eleitores podem observar e verão que ele não age como político democrático. O exercício da política traz bônus e ônus também. Ele deveria assimilar isso.”

Com passagem por jornais de São Paulo e da região, como o próprio Diário, o cartunista Gilmar Machado alegou que a ofensiva ao trabalho da imprensa tem partido com maior peso de governos retrógrados, referindo-se à gestão Jair Bolsonaro (sem partido), “que elogia militares, a tortura e torturadores”. “Com isso, vem uma onda, as pessoas se acham no direito (de intimidar jornalistas e chargistas). Eles saíram do armário. É uma maneira de intimidar, é uma coisa bizarra. O que se percebe é que, depois da ditadura, o que presenciamos nos dias de hoje é tentativa de censura.”

Na mira do governo federal, o chargista Renato Aroeira avaliou que a medida é tentativa de censura. Segundo ele, a postura é burrice e pode ser tiro no pé. “Percebemos claramente endurecimento, levando em conta que essas pessoas estão processando uma piada. Sabe-se que se você quer garantir que um garoto fique com apelido reclame do apelido aos colegas. Cada vez que prefeito, presidente, ministro da Justiça, autoridades reclamam de charge, chama atenção e ele leva essa charge a locais nunca antes imaginados. Aumenta a visibilidade. Parabéns ao Fernandes. Quando um desses poderosos nos processa, a gente pode usar isso como condecoração.”

Aroeira fez charge de Bolsonaro pintando suástica, símbolo do nazismo, em imagem da saúde. O ministro da Justiça, André Luiz Mendonça, anunciou na ocasião que pediu abertura de inquérito para investigar o material, sob argumento de falsa imputação de crime ao presidente.

Profissional já ganhou ‘Oscar’ do traço brasileiro duas vezes

Luiz Carlos Fernandes, 60 anos, iniciou sua carreira em 1979, aos 20, quando publicou seus primeiros traços no jornal O Estábulo, de sua cidade natal, Avaré, no Interior de São Paulo.

Chegou no Grande ABC em 1982, quando veio para estudar na Capital – na Escola Panamericana. Trabalhou nas publicações Jornal do Planalto, Retrato do Brasil e Diadema Jornal. Iniciou como freelancer no Diário do Grande ABC em 1983, para uma encomenda envolvendo a política regional: tinha de desenhar a caricatura e um retrato dos sete prefeitos à ocasião. Em 1989, se tornou funcionário efetivo do maior jornal regional do País.
No Diário, além da charge dos principais assuntos retratados no dia, Fernandes empresta seu talento para ilustrações em demais reportagens, colunas e também no suplemento infantil Diarinho.

Seu primeiro prêmio foi o HQMix, considerado o Oscar dos quadrinhos no Brasil. Em 1997, assinou as ilustrações da Coleção Castelo Rá-Tim-Bum, cultuado programa infantil transmitido na TV Cultura. Em 2010, novamente foi premiado no HQMix: melhor caricaturista do País.

Ao longo da carreira, enfileirou troféus em salões nacionais e internacionais. No Brasil, recebeu primeiro lugar de caricatura em 2001 e em 2018, ano em que também faturou o grande prêmio da mostra. Em 2005, levou o prêmio aquisitivo da Câmara de Piracicaba, entregue no local.

Em 2003, venceu com a melhor caricatura no Salão Internacional do Piauí. Em 2003 e 2004, levou o Salão Univates, do Rio Grande do Sul.

O talento de Fernandes rodou o mundo. Em 2005, teve a melhor caricatura no Salão Internacional de Caragiale, na Romênia. Em 2017, World Press Cartoon, em Portugal. Dois anos depois, faturou a melhor caricatura no Cartoonrendon Internacional Festival, na Colômbia, e o Porto Cartoon, em Portugal.

Fernandes recebeu diversas menções honrosas nas mais variadas mostras nacionais e internacionais, organizou dezenas de exposições, foi jurado de salões, inclusive o International Nasreddin Hodja Cartoon Contest, em Istambul, na Turquia.

O chargista dá nome a uma sala no centro cultural de Avaré.

EDITORIAL
Não vão nos intimidar

Prefeito de São Bernardo, Orlando Morando (PSDB) diz não ter entendido o desenho que o Diário publicou à página 2 de Opinião na edição de 19 de julho. Por isso, acionou a Justiça para cobrar do ilustrador Luiz Carlos Fernandes, um dos profissionais do traço mais respeitados do Brasil, explicações sobre a charge em que aparece retratado como homem-placa em busca de negócios: “Compro terrenos. Dinheiro na hora”. Diz desconfiar de que a ilustração pode ter sido feita para atacar-lhe a honra, e ameaça processar o autor com base no Código Penal.

Morando é um homem inteligente. Difícil acreditar que não tenha, de fato, compreendido o teor da charge, expediente comum a que recorrem os principais jornais do mundo para fazer crítica bem-humorada, ainda que ácida, a algum episódio relevante do noticiário do dia – no caso, o fato de a empresa do prefeito ter sido denunciada à Polícia Federal por comprar imóveis por preço abaixo do valor venal, prática inusual no mercado.

Ao judicializar o episódio, alertando os profissionais desta Casa – ele inclui na ação contra Fernandes o diretor de Redação, Evaldo Novelini, e o editor-chefe, Wilson Moço, e move um segundo pedido de explicações contra o editor de Política, Raphael Rocha, por razões similares – que pode processá-los por crimes contra a honra, caso não se sinta satisfeito com as respostas, Morando emite sinais claros de que tenta constranger e intimidar quem tão somente exerce os direitos legais de crítica e informação. Se esta foi a intenção do chefe do Executivo, adiante-se que falhou.

Criar qualquer tipo de embaraço à atividade jornalística, que inclui o direito à crítica a personalidades públicas, é medida que não se coaduna com o ambiente democrático assegurado pela Constituição da República, promulgada há 32 anos, em 1988. No quarto inciso de seu quinto artigo, a Carta Magna reza, de modo cristalino, que “é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato”.

Com mais de 20 anos na vida pública, como fez questão de ressaltar nas ações contra Fernandes e Raphael Rocha, Morando teve tempo suficiente para aprender que charges, por mais ferinas e ácidas que sejam, não fazem qualquer tipo de acusação, apenas ressaltam características inatas da personalidade que determinadas pessoas gostariam de manter escondidas. Nenhuma movimentação antidemocrática, seja do prefeito de São Bernardo ou de qualquer outra autoridade, vai afastar o Diário e os seus profissionais da missão de bem informar a população do Grande ABC. Fácil de compreender, não? Ou seria melhor desenhar? 




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