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Vinicius Vieira:‘Bolsonaro não vê importância do Mercosul’
Raphael Rocha
Do Diário do Grande ABC
16/12/2019 | 07:45
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Divulgação


Professor titular da Faap (Fundação Armando Alvares Penteado) e da FGV (Fundação Getulio Vargas) em relações internacionais, Vinicius Vieira critica a política externa do governo do presidente do Brasil, Jair Bolsonaro (se, partido), em especial as declarações do alto escalão do Palácio do Planalto contra o Mercosul. Na visão do especialista, a retomada de crescimento da economia brasileira passa, necessariamente, pela boa relação com os vizinhos da América Latina. Vieira também comenta as crises vividas por nações da América do Sul, analisa o duelo mundial entre Estados Unidos e China e pondera que, em alguns países, há risco de ser instalada uma ditadura. 

Quais fatores implicam nesta crise que percorre toda a América Latina?

A crise tem como grande pano de fundo mudança político-econômica. Temos movimento de mudança de poder em escala mundial, representado por Estados Unidos e China. Os efeitos econômicos vêm dessa disputa de poder. O avanço da China impactou muito a América Latina por causa do aumento de demanda por commodities (produtos de início da cadeia produtiva). A demanda chinesa é quase interminável por matérias-primas, agrícolas e minerais. À medida em que a China estabiliza seu papel de crescimento, há redução de preço de commodities e países exportadores passam a perder fôlego financeiro. Esse é o caso da América Latina, incluindo o Brasil. Em 2013, tivemos a primeira grande crise da América Latina, e foi no Brasil. Tivemos muitos protestos de 2013 a 2018. Talvez a cota de protestos tenha terminado por aqui ou levará tempo para a gente ter manifestação significativa. O que temos do ponto de vista político é relação dos Estados Unidos sobre a China e tentativa de influência do governo de Donald Trump. Não são golpes, como setores da esquerda fazem querer acreditar. É afinidade com governos da América Latina. A China tem essa afinidade também com governos mais centristas, de esquerda. Como esse jogo de poder repercute em nível mundial, mexe na configuração de poder da região. Temos em um país como Chile, com afinidade com os Estados Unidos, protestos de elementos de esquerda. A força dos protestos não é só por isso (relação do poder), mas pela exaustão do modelo de exportação de matérias-primas. O governo do (Evo) Morales (na Bolívia), mais à esquerda, cai em virtude da tentativa de ele se agarrar ao poder a qualquer custo. Seria a quarta reeleição, sem direito a fazer. Evidentemente que temos configurações locais, mas como pano de fundo dessa transição de poder que causa instabilidade na política econômica mundial.

Mas o senhor vê espaço para surgimento de alguma ditadura nesses países em conflito?

Não descarto completamente porque depende muito da configuração local de poder. Uma ditadura emerge e aparece por série de fatores, internacionais e domésticos. Doméstico é até preponderante para surgir um governo totalitário. (Emerge) Quando a classe política vê que não consegue mais lidar com as situações. O que vejo claramente não é uma tendência a governos ditatoriais, mas, eventualmente, em alguns contextos, um aceno à redução de direitos sociais como forma de reposicionar os países no jogo do capitalismo mundial. É a lógica de crescimento de posicionamento econômico internacional, com redução de custos para oferecer mais retorno e atrair mais investimentos, com a promessa de repartir o bolo do lucro. Há setores de governo que sugerem autoritarismo, com controle de estabilidade política de forma a garantir o retorno do investimento. Chile, agora, pressionado a dar mais proteção social. Na Argentina e México, os governos de esquerda acabaram de ser eleitos. O (Andrés Manuel) Lopez Obrador há um ano, sob essa perspectiva (de maior proteção social). Mas não há tendência clara por mais direitos e proteção de um lado. Em alguns casos haverá prevalência pela produção social e, em outros, cerceamento aos direitos sociais sem eliminar o jogo democrático. 

O presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, fez discursos contra o Mercosul. Após a eleição de Alberto Fernández como presidente da Argentina, o movimento voltou a ser especulado por interlocutores do Palácio do Planalto. Como o senhor vê esse posicionamento?

No aspecto econômico externo ele não percebe (a importância do Mercosul), não só pelas limitações dele, mas pelo fato de ser mal assessorado. Brasil só busca retomada a partir do Mercosul. Espera-se que atue como líder regional. Não que deva aceitar qualquer coisa dos vizinhos, mas não pode brigar com os vizinhos por qualquer coisa. Falta maturidade a Bolsonaro sobre visão de mundo. Mesmo o governo da Argentina mais à esquerda precisa do Brasil. Não precisa ser amigo, mas precisa manter as portas abertas para conversar com o presidente da Argentina. Nosso setor mais cambaleante é o de manufaturas, da indústria em geral. Ficamos quietos perante a ascensão da China, isso não apenas no governo Dilma (Rousseff, PT), mas no governo (Luiz Inácio) Lula (da Silva, PT). Brasil voltou a ser exportador de produtos primários em vez de produtos manufaturados. Para completar a cereja desse bolo, nada saboroso aliás, é por questão meramente ideológica o Bolsonaro querer acabar com o Mercosul, que virou principal destino de manufatura brasileira. Sem Mercosul nossa indústria vai fechar mais postos de trabalho. Sem indústria, o Brasil não recupera sua capacidade. Mercosul precisa de reformas, Argentina precisa evitar protencionismo. Mas não é brigando com a Argentina que vamos ajeitar. O próprio Fernández está mais à direita do que os Kirchner (a vice de Fernandéz é a ex-presidente Cristina Kirchner). Ainda que venha com ideia de congelamento, não vai se dar ao luxo de desprezar o comércio exterior. No Brasil, há equívoco no debate. Ou é totalmente liberal ou é totalmente desenvolvimentista. Falta visão estratégia no Bolsonaro, mas em outros governos também faltou.

Como o senhor vê a política externa do governo Bolsonaro?

Me parece equivocada. Ele faz aceno muito forte aos Estados Unidos. De fato precisávamos ter espécie de reaproximação com os Estados Unidos depois de anos de afastamento. A vocação do Brasil, por não ser País forte no cenário mundial, mas sem ser pequeno, é ter postura mediana. É uma potência média. Não é tão vocal de definir interesses de maneira extrema, mas ao mesmo tempo não pode se dar ao luxo de ignorar que precisa ter voz própria no cenário internacional. Ele se aproximou dos Estados Unidos de maneira ideológica, falando mal da China no primeiro momento, entrando em atrito com países árabes para transferir a embaixada (brasileira em Israel) de Tel-Aviv para Jerusalém. Mas freios foram colocados pela base (de Bolsonaro), como agronegócio. Essa base perderia recursos com os árabes e China (caso houvesse rompimento). Fato de a agenda dos Estados Unidos não ter trazido neste primeiro momento grandes resultados econômicos fez Bolsonaro se aproximar de Xi Jinping (presidente da China). Depois ele se reuniu com o Brics (bloco formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul). Ele anunciou visita à Índia. Na esfera econômica, o pragmatismo está fazendo valer. A política externa precisa ir para o desenvolvimento. Fora da área econômica, infelizmente a questão ideológica domina. O governo Bolsonaro considera diplomacia religiosa. Algo que esteve à margem da política externa porque somos um Estado laico. É grande o risco porque a agenda ideológica pode contaminar nas relações pragmáticas. Como contaminou na relação do Mercosul, algo que Bolsonaro não foi capaz de dissociar.

O senhor vislumbra solução de curto prazo para esses países em crise mais profunda?

A Bolívia tem mais chances de entrar nos eixos porque querem fazer novas eleições, embora tudo ali inspire cuidados. O histórico da Bolívia é marcado por golpes, governos instáveis. Mesmo assim, na Bolívia vejo mais condições de manter a democracia em curto prazo do que na Venezuela. O que define a democracia não é se há ou não governo de plantão por anos, mas se tem possibilidade de alternância de poder e atuação livre de oposição. Não vejo essas condições na Venezuela. (Nicolás) Maduro (presidente venezuelano) deveria sofrer golpe interno. Ele se manterá no poder se os militares entenderem que ele serve mais. Os militares têm altos salários e, se não se sentirem ameaçados pela população, manterão o Maduro. Duvido que convoquem eleições. O desfecho da Venezuela não está dado. Por mais que Maduro saia do poder, acredito que haverá eventual continuidade de autoritarismo. Na Bolívia tem saída mais possível, mas a Venezuela terá de esperar isso por anos. A antiga oposição ao Evo Morales quer ir à forra, quer impedir participação de partidos ligados a ele. Evo também errou ao querer ficar no poder. 

No fim dos anos 2000, se formou na América Latina um grupo de líderes de esquerda, como Lula (Brasil), Cristina Kirchner (Argentina), José Mujica (Uruguai), Rafael Correa (Equador). Mas em muitos desses países houve um esgotamento desses governos, com ida à direita. Por que isso aconteceu?

Não é resposta aparentemente fácil. Esses governos de esquerda tiveram irresponsabilidade fiscal. O Brasil, o Evo Morales, jogaram com as regras do mercado, do capitalismo moderno. Isso implica que, para você ter algum benefício social, é preciso também assegurar retorno aos investimentos. Então há aumento dos preços das commodities em 2005, 2006. Em 2008, os Estados Unidos sofrem derrocada (na economia) sem volta para a esquerda, o que é visão equivocada. Não está claro quando os Estados Unidos perderão poder. China está consolidada, mas não quer dizer que os Estados Unidos vão perder o poder das cartas. A partir de 2010, no Brasil, quando o País cresce surpreendentemente 7% ao ano, graças à injeção de recursos, tem abertura de excesso de gastos, de política pretensiosamente desenvolvimentista. Mas exageram na dose de gastos públicos sem significar investimento. Eles não se atentaram que o ciclo de commodities estava perto do fim. Em 2012 e 2013, houve desaceleração do crescimento chinês. O governo Dilma não fez investimento, queimou dinheiro. Foram bolsas e mais bolsas gastas no Exterior sem nenhum retorno. Não foi possível mensurar o ganho na nossa economia, na nossa educação (o investimento aplicado). Houve excesso de corrupção. Sabe-se que é algo tácito que há sempre um grau de promiscuidade entre governantes, a despeito de integrantes do Estado deverem atuar em prol do bem comum. Mas parece que o limite de tolerância foi ultrapassado, gerando mobilizações. O Brasil abriu esse processo. Depois foram Peru, Chile. Então temos combinação de fatores. A crise chegou mais cedo a governos mais incompetentes e foi adiada por países mais competentes, como o caso do Chile. 




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