Cultura & Lazer Titulo
Tom Cruise dispensa dublês em Missao Impossível - 2
Do Diário do Grande ABC
22/06/2000 | 17:35
Compartilhar notícia


Logo no começo de "Missao: Impossível - 2" Tom Cruise fica pendurado por uma só mao numa escarpa do penhasco que escala. Lá embaixo descortina-se a imensidao do vale do Moab, no Utah. Como Monument Valley, é um solo sagrado do western. É a primeira de uma série de referências ao gênero. Cruise dispensou dublês no filme que produziu. O espectador se pergunta qual é o truque, pois ninguém é louco de acreditar que o astro mais belo e poderoso de Hollywood tenha arriscado a vida. O filme estréia neste fim de semana.

Há um truque, com certeza, e há muitos outros no filme do maior diretor de açao da atualidade, John Woo. "Missao: Impossível - 2 é eletrizante", melhor do que o primeiro, dirigido por Brian De Palma, que já era bom. Woo dominou a máquina de Hollywood. Colocou-a a seu serviço, para fazer filmes espetaculares que expressam sua visao de mundo, aquela que ele começou a esculpir nas modestas produçoes de Hong Kong.

Pode ser que surjam filmes melhores do que esse até o fim do ano. Com certeza surgirao. Mas, dificilmente, algum conseguirá ser mais elétrico e eficaz como espetáculo de açao.

O abre do filme é essencial, antes mesmo da imagem de Tom Cruise fazendo climbing. A primeira frase dita o conceito do filme. Para destacar as virtudes do herói, é preciso criar um vilao terrível. O texto refere-se a um vírus criado em laboratório, Quimera, como o monstro derrotado por Belerofontes na mitologia grega. A trama gira em torno do roubo do antídoto contra a praga. E assim o filme começa a toda velocidade, com um vilao que assume a máscara de Tom Cruise para se apossar do antídoto que poderá render-lhe bilhoes.

Para realçar o herói é preciso criar um grande vilao. É o conceito de "Missao: Impossível - 2", com o qual estaria de acordo o mestre do suspense, Alfred Hitchcock. Ele dizia que a qualidade de um filme do gênero depende muito da eficiência do vilao. E citava o caso clássico de Robert Walker em "Pacto Sinistro". A história do herói e do vilao nao se aplica só à praga e ao antídoto, a Quimera e a Belerofontes, em Missao: Impossível - 2. Aplica-se a Tom Cruise e a Dougray Scott. Cruise é Ethan Hunt, o herói que veio da cultuada série de TV. Scott é Sean Ambrose, o dublê de Hunt que se apossa de sua identidade para roubar Belerofontes. Scott nao é um estreante. Foi o príncipe da Cinderela Drew Barrymore. Rouba a cena em "Missao: Impossível - 2".

Além de ser um grande astro, Cruise é um homem generoso. Nao se importou de servir de escada para Dustin Hoffman em "Rain Man", permitindo que o diretor Barry Levinson usasse seu prestígio para montar a operaçao financeira que resultou no filme. Tudo isso para oferecer a Hoffman o melhor papel, que deu o Oscar ao ator.

Disposto a aprender, como ele disse, Cruise também ficou dois anos à disposiçao de Stanley Kubrick, só para ter a honra e o privilégio de trabalhar com o grande diretor em "De Olhos bem Fechados". Nao dê ouvidos aos que dizem que se trata de um mau Kubrick, de um desfecho indigno da sua extraordinária carreira. O filme que chega em julho ao vídeo é superkubrickiano.

Ao afastar-se das megaproduçoes por dois anos, Cruise perdeu a posiçao de número 1 no ranking dos astros de Hollywood, ditada sempre pela renda dos cinco últimos filmes. Recupera-a, agora, com 'Missao: Impossível - 2".

Arte dos sentimentos - O herói é bárbaro, mas o vilao... Scott nao é somente um homem bonito (nas pré-estréias, as mulheres ficaram loucas por ele). É também um ator. Seu personagem morre de desejo por Nyah Hall, interpretada por Thandie Newton, que já trabalhou com Cruise em "Entrevista com o Vampiro".

Quando a reencontra, passa uma sombra, uma expressao de dor pelo olhar de Scott/Ambrose, o que só um verdadeiro ator pode oferecer ao público. Nesse momento, o filme de açao despe-se da sua espetaculosidade para penetrar nos meandros do sentimento humano.

Essa história de amor, vale destacar, aproxima o filme de Woo de um clássico de Alfred Hitchcock nos anos 40. "Notorious" (no Brasil, Interlúdio) nao goza do prestígio de 'Um Corpo Que Cai e Janela Indiscreta', mas é o filme que os hitchcockmaníacos de carteirinha, como François Truffaut, adoram amar. O filme é a quinta-essência de Hitchcock, com sua mistura de suspense e romance. Em "Interlúdio", Cary Grant é o agente do governo que ama Ingrid Bergman, mas ela, qual Electra, infiltra-se no covil dos nazistas e simula amor por Claude Rains movida pela necessidade de obter informaçoes e purgar-se por ter tido um pai acusado de traiçao aos Estados Unidos. Tem tudo a ver com a intriga romântica de 'Missao: Impossível - 2'.

Anthony Hopkins tem uma pequena mas decisiva participaçao como o superior de Cruise/Hunt no serviço secreto. Descoberta a participaçao de Ambrose no episódio do roubo da droga, a questao é localizá-lo. É aí que entra Nyah, como chamariz. Ela se afastou de Ambrose, mas ele ainda a ama (e como!). A questao é forçar Nyah, uma ladra, a penetrar no covil do lobo. Para isso Hunt aproxima-se de Nyah. Depois, se preocupa porque, ao assumir sua parte da missao impossível, ela terá de mentir, dissimular, reavivar o amor de Ambrose. "Nao foi treinada para isso", diz Hunt. "Foi treinada desde que nasceu, é uma mulher", replica Hopkins.

Antes que as feministas de plantao tenham tempo de agitar-se na poltrona, Nyah começa a subverter esse conceito da mulher como dissimuladora. Ela se apaixona por Hunt. Por ele, chega ao sacrifício extremo de arriscar a própria vida.

Jogo de duplos - Woo adora mostrar Cruise com os cabelos ao vento, mas nao está embutida, em "Missao: Impossível - 2", nenhuma propaganda de xampu. Cabelos e capas ondulantes sao imagens emblemáticas do cinema de Woo, como os homens que sacam suas pistolas ao mesmo tempo e ficam todos apontando suas armas, uns para os outros. De "A Outra Face", com Nicolas Cage - seu pior filme -, vem o tema do duplo. Hunt e Ambrose assumem outras identidades em cena, um usa a cara do outro e essa é uma forma de ligar o cinema de açao do diretor de Hong Kong à memorável série de westerns B que Budd Boetticher realizou nos anos 50 com Randolph Scott, nos quais o vilao é sempre a extensao da parte sombria do herói e ambos sao as duas faces da mesma moeda. Nao será assim também com Hunt e Ambrose?

Vibrante como espetáculo de açao, o filme exibe o extraordinário domínio de Woo sobre a técnica. As cenas de lutas sao de tirar o fôlego. As reviravoltas que Cruise dá no ar sao menos o produto de efeitos digitalizados que de fios habilmente manipulados. O corte dentro da câmara lenta é outra marca de Woo presente em 'Missao: Impossível - 2'.

E ele insiste nas conotaçoes homossexuais dos viloes. Já era assim em 'O Alvo", seu passaporte para Hollywood, com Jean-Claude Van Damme. Ambrose tem um segundo que desconfia de Nyah. Quando ela chega ao QG do crime, Hugh Stamp (Richard Boxburgh) a observa à distância. Se há desejo no olhar de Ambrose, há ódio no do seu lugar-tenente.

Os dois executam num determinado momento uma coreografia da violência. Um, Ambrose, fica por cima do outro. Detalhes sutis de construçao cênica e dramática que ajudam a dar intensidade aos personagens de um filme que vai além da pura açao.

Há um arrebatador jogo de desejos que se revela por meio de olhares e gestos. Ora, como bem observou o poeta Nicholas Ray ídolo de Jean-Luc Godard e Wim Wenders, o cinema nao é outra coisa senao a melodia do olhar. E "Missao: Impossível - 2", apostando no olhar, é cinema de primeira e nao apenas mera diversao.




Comentários

Atenção! Os comentários do site são via Facebook. Lembre-se de que o comentário é de inteira responsabilidade do autor e não expressa a opinião do jornal. Comentários que violem a lei, a moral e os bons costumes ou violem direitos de terceiros poderão ser denunciados pelos usuários e sua conta poderá ser banida.


;