Política Titulo
'Secretaria existir já é uma vitória', diz Matilde Ribeiro
Regiane Soares
Do Diário do Grande ABC
04/04/2004 | 21:13
Compartilhar notícia


Um ano após a sua criação, a Secretaria Nacional de Promoção da Igualdade Racial espera ansiosamente por sua principal conquista: a aprovação do Estatuto da Igualdade Racial, cujos principais temas ainda são analisados pela equipe do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e não tem data para chegar ao Congresso. O ponto de discórdia é a polêmica sobre a reserva de cotas para negros na área da Educação. A própria ministra Matilde Ribeiro reconhece que o tema é polêmico, mas não receberá veto do governo. Recentemente, o item foi alterado e agora caberá aos Estados e municípios estabelecerem um limite.

Em entrevista ao Diário, a ministra comemorou a aproximação com países africanos para discutir políticas públicas que envolvam a questão racial, além do início do trabalho de recuperação dos quilombos.

DIÁRIO – Quais foram as conquistas da Secretaria neste primeiro ano de existência?
MATILDE RIBEIRO – O fato de ter passado a existir essa Secretaria, por si só, já é uma vitória. Isso porque a questão racial nunca esteve colocada na agenda do governo federal com o comprometimento de continuidade. Então, essa Secretaria foi formulada ao longo dos anos por parte do movimento negro, e o governo, ao criá-la, reconhece que existe racismo e que é o seu papel fazer parte da superação do racismo. Não é papel exclusivo do governo, mas o governo tem comprometimento com isso. Estruturar essa Secretaria, não é fácil, porque a lógica das políticas públicas não está para inserção de temas que são considerados da esfera da sociedade. Então, as políticas tradicionais, como educação, trabalho e saúde, partem de um princípio universalista, e não se considera dinâmica social. O racismo, a desigualdade racial, é produto de relações históricas, culturais e sociais. Para alterar essa situação, depende de medidas legais, normativas e de ações políticas. Então, é uma novidade no cenário de políticas públicas tratar desse tema: gênero, raça, meio ambiente e violência. Então, tudo isso traz uma novidade no cenário federal. A presença de negros em Brasília também é uma novidade. Nós nunca tivemos num organismo a concentração de tantos negros com a mesma capacitação profissional e política que os brancos, e com o mesmo comprometimento na ação.

DIÁRIO – Já se pode mensurar os resultados da Secretaria?
MATILDE – O que dá para medir é o quanto de programas estão sendo formatados, ou já estão em andamento. Não há resultados quanto a indicadores. Por exemplo, a ação que se tornou visível para o governo e para a sociedade foi a redefinição da política de quilombos e o início da ação com quilombos. Quantos quilombolas estão sendo atendidos? Não sei. Então, o momento é de estruturar o organismo e de estruturar as políticas. E nesse sentido minha avaliação é positiva. É animador ver que existem possibilidades concretas. Agora, a expectativa é muito maior que isso, é de incidir efetivamente na mudança da vida da população, isso está por vir ainda.

DIÁRIO – Como estão as relações internacionais com os países africanos?
MATILDE – Nós tivemos um resultado importante na área de relações internacionais. O presidente Lula indicou, desde os primeiros dias de governo, que além de estreitar relações políticas, econômicas e sociais com o mundo, ele quer restabelecer a relação com a África, como pagamento de uma dívida histórica, e também com a América do Sul. Estamos construindo uma relação com Angola, Moçambique, Namíbia, São Tomé e Príncipe e África do Sul, o que resultou em um seminário que aconteceu em Brasília, cujo objetivo era pactuar propostas de ação política, de relação bilateral. Essa é uma questão importante também que a concretização dos acordos, dos compromissos, está em debate mas é um bom caminho para este fortalecimento, já definido pelo presidente. Outra área é a Educação, cujo principal tema de debate público é a política de cotas, mas nós entendemos que trabalhar a Educação no país significa reorientar toda a política de ensino como um todo e com isso contribuir a médio prazo para acesso para permanência e para qualidade da presença da população negra no Ensino Público, e a mudança da política educacional e vou citar um exemplo. Por lei, todos tem o direito, os alunos negros entram e vão sumindo, conforme vão passando os anos, vão sumindo das estruturas do ensino e isso é um fator importante. Tem estudiosos que dizem que para a população negra não dá para se considerar simplesmente a evasão, quando você analisa os ciclos educacionais, tem de se considerar que há uma expulsão da população negra do Sistema Educacional, por parte das dinâmicas das instituições, e daí o exemplo concreto que eu posso dar. O racismo existe na sala de aula, tem estudos que comprovam os alunos negros não tem a mesma atenção e o mesmo acompanhamento que os alunos brancos. Então, esse é um fator. Os alunos vão se tornando arredios à escola. Outro fator social e econômico é que eles têm que sair muito cedo das escolas, ajudar no sustento da família. A violência também incide na não continuidade dos estudos. É possível reverter isso, é possível capacitar os professores para terem condições de lidar com os conflitos raciais em sala de aula, é possível capacitar os educadores como um todo para lidarem com os materiais didáticos de forma positiva, é possível mudar os materiais didáticos que traduzem preconceitos e estigmas que contribuem para a continuidade do racismo e existe lei. O presidente Lula assinou como uma das suas primeiras medidas a Lei 10.639, que obriga o Ensino da História e Cultura da África em todos os níveis do Ensino, para isso acontecer tem de ter uma forte sensibilização dos educadores e uma mudança dos procedimentos para a Educação. São coisas possíveis de serem realizadas e já estão em curso. Falar em Educação, não significa falar só de cotas. Significa falar do sistema educacional e dentro disso cotas, a pergunta é a seguinte: Mas por que cotas, se a educação é um direito básico? Justamente por essa historinha que eu contei, de acesso, permanência. Os negros não chegam na ponta, não chegam nas universidades e as pesquisas indicam entre as pessoas que concluem níveis universitários apenas 2% a 3% são negras, num país de quase 50% da população negra. As ações afirmativas vêm no sentido de responder a esse vácuo e de construir uma efetiva justiça social. Se os direitos são para todos, os negros têm direito a universidade privada. As cotas aparecem como um elemento importante e fundamental, mas não é o único.

DIÁRIO – Mas como manter o negro na universidade?
MATILDE – É fundamental. Vai manter ensinando, propiciando que ele participe da vida acadêmica e também para todos os alunos estímulos para pesquisa, bolsas, vale-refeição, transporte... Tudo isso ajuda a manter as pessoas pobres e negras na universidades. Eu acho que esse ponto é bastante delicado porque por trás de uma pergunta dessas, pode estar tendo a compreensão de que os negros não têm capacidade de seguir o sistema de ensino universitário ou então eles têm que ser tratados como bicho raro: “Oh! Aquele lá da cota”.

DIÁRIO – E não existe a preocupação que a partir daí possa gerar um outro tipo de racismo?
MATILDE – Eu acho que o racismo permite isso. Então é possível evitar, é possível ter o antídoto. E qual é o antídoto? No meu ponto de vista, primeiro nós trabalharmos no que é natural que o negro esteja lá. Ele não é menos inteligente que o branco. Ele tem direito de estar lá. Segundo, trabalhar todos esses estímulos que eu coloquei que são válidos para todo mundo. A Universidade Federal de Brasília acabou de aprovar o edital que vai propiciar a entrada da primeira turma através do sistema de cotas. Eu acho que essas questões que são colocadas como impossibilidades: “Ah! Os negros não vão ter a mesma preparação que os brancos”. Ou vai acirrar o conflito. Elas são justificativas que reforçam o racismo e impedem a implementação do sistema de cotas. Eu acho que a experiência em curso poderá provar que a realidade é outra. Acima de tudo, que os negros têm a mesma capacidade que os brancos, basta ter oportunidade.




Comentários

Atenção! Os comentários do site são via Facebook. Lembre-se de que o comentário é de inteira responsabilidade do autor e não expressa a opinião do jornal. Comentários que violem a lei, a moral e os bons costumes ou violem direitos de terceiros poderão ser denunciados pelos usuários e sua conta poderá ser banida.


;