Cultura & Lazer Titulo
Filósofo francês faz palestra em Santo André
Do Diário do Grande ABC
27/02/2000 | 17:31
Compartilhar notícia


O filósofo francês Jean-François Matteí, autor de A Barbárie Interior - Ensaios Sobre o Imundo Moderno (a traduçao para o português está sendo estudada), abre nesta segunda-feira, às 20h, em sessao especial, a ediçao 2000 do Café Filosófico da Casa da Palavra (praça do Carmo, 171, Santo André. Tel.: 4992-7218). Trata-se da primeira palestra aberta ao público que Matteí ministra nesta sua visita ao país, um evento que terá traduçao consecutiva de Sonia Goldfeder. A Barbárie Interior, lançado em 1999, esgotou duas ediçoes em poucos meses.

Professor da Université de Nice-Sophia Antipolis, especialista em Platao e Heidegger e com sua produçao ainda inédita em português (Pitágoras e Pitagóricos só será lançado nas próximas semanas, pela Paulus), Matteí abordará no Café Filosófico o tema Civilizaçao e Barbárie no Mundo Moderno, palestra que se repetirá terça, a partir das 19h30, na Livraria Cultura, em Sao Paulo (av. Paulista, 2.073, Conjunto Nacional. Tel.: 285-4033).

Em entrevista ao Diário, Matteí diz que a barbárie do homem é a do sujeito moderno voltado para seu egoísmo e seus desejos. Além disso, ele ressalta que nunca os direitos humanos foram tao violados e a violência urbana foi tao grande, seja ela real ou virtual, como agora. Confira trechos:

DIARIO - Qual é seu conceito de barbárie interior?
JEAN-FRANÇOIS MATTEI - Eu chamei de barbárie interior a forma moderna que a barbárie assume em nossos tempos sob a forma de um centramento do Sujeito humano sobre si, que o fecha de certa maneira em si mesmo e o proíbe de abrir-se ao mundo, aos outros homens e, simplesmente, a tudo o que dá sentido à sua existência. Essa noçao de barbárie interior já foi abordada por um grande número de filósofos e de pensadores, como Albert Camus e Georges Bernanos, na França, por Adorno e Horkheimer, na Alemanha, por Hannah Arendt, nos Estados Unidos, e George Steiner, na Inglaterra. Me parece que o primeiro a ter tratado a questao nos tempos modernos foi Giambattista Vico, o grande pensador italiano do século XVIII, que falava da barbárie da reflexao para definir os excessos da racionalidade de seu tempo, que podiam empobrecer o homem.

DIARIO - Existe diferença entre barbárie da História e barbarismo do mundo moderno?
MATTEI - Existe, sem dúvida. As barbáries antigas, tais como as vividas pelos gregos, e sobretudo pelos romanos, eram barbáries brutais de destruiçao exterior (pilhagens, massacres, estupros, ruínas etc.) que aniquilavam uma civilizaçao. Na verdade, os romanos já distinguiam duas formas de barbárie: a ferocita, a violência feroz e brutal, que eles identificavam com a barbárie dos povos do Norte da Europa (Godos, Germanos, Hunos etc.) e a vanitas, ou seja, a "vacuidade" (vanus, em latim, significa vazio) que eles ligavam ao comportamento dos povos asiáticos, ao leste da Europa. A barbárie, portanto, para eles, era exterior ao mundo romano, do outro lado do lime, ou seja, da fronteira que definia a civilizaçao. Porém, eles sentiam que essa barbárie também poderia ser encontrada no interior de Roma e que a civilizaçao poderia morrer por si mesma, em uma espécie de autodestruiçao.

DIARIO - A barbárie moderna foi fabricada pela civilizaçao ou ela sempre existiu?
MATTEI - Se entendemos por barbárie as forças destrutivas do ser humano que o levam a destruir ao invés de edificar, a esterilizar ao invés de criar, a barbárie existe desde sempre. Mas é necessário precisar que, diferentemente da selvageria, a barbárie nao nasce primeiro. Para que haja barbárie é preciso que haja antes uma civilizaçao: só podemos destruir aquilo que existe e só podemos esterilizar aquilo que está vivo. É, portanto, em certa medida, a civilizaçao que produz a barbárie na sua incapacidade de controlar as forças destruidoras do ser humano que o levam a se destruir e a destruir outros homens. Essa é uma especificidade humana desconhecida do mundo animal. A barbárie moderna é uma barbárie terna, soft, interiorizada na reflexao e na própria civilizaçao, sob a forma de uma esterilizaçao de tudo aquilo que aumenta a nobreza do homem, em política, em educaçao, na arte e na cultura etc.

DIARIO - No mundo, e no Brasil, o desemprego é uma questao crucial, pois isso deixa os jovens sem perspectivas. O Grande ABC, há muitos anos, está voltado para o setor industrial, que pode estar em declínio ou vivendo um processo de fusoes. É uma situaçao que também gera falta de perspectivas. Alguns chegam ao extremo de se unir em grupos (como os Carecas do ABC) que promovem o racismo contra negros, homossexuais e imigrantes do nordeste brasileiro, a exemplo dos skinheads europeus. A civilizaçao ocidental fracassou?
MATTEI - Nao conheço suficientemente as condiçoes econômicas, políticas e culturais do Brasil para responder com precisao a essa questao. No entanto, como as condiçoes da mundializaçao sao mais ou menos as mesmas em todos os lugares hoje, posso afirmar que as mudanças consideráveis que conhecemos nesse fim do século XX, sob a pressao das novidades científicas e técnicas, sao a causa essencial da crise atual. De um lado, a maioria da populaçao nao pode acompanhar os progressos científicos, apesar dos esforços dos países em matéria de educaçao, e também nao consegue mais se adaptar a formas de civilizaçao cada vez mais complexas (comunicaçao, serviços, eletrônica, computadores, Internet etc.). Por outro lado, as regras da concorrência internacional, por conta do mercado mundial, impoem reestruturaçoes, fusoes entre os grandes grupos industriais, pois sem isso eles sao absorvidos ou destruídos, o que provoca perda de emprego no setor primário (agrícola) e secundário (industrial). E é exatamente essa perda que ainda nao foi compensada pela criaçao de empregos no setor terciário (serviços) e quaternário (comunicaçao). Será que a civilizaçao ocidental fracassou? Pode-se dizer que ela se saiu muito bem, porque privilegiou, já há dois séculos, o controle material do mundo (natural e técnico) e os métodos de controle que sao os processos racionais. A civilizaçao moderna é materialista (ela só conhece o progresso material e suas conseqüências em termos de produtos, de consumo etc.) e tecnocrática (ela utiliza processos ou procedimentos técnicos em todos os domínios, da indústria ao Direito e mesmo a moral): ela nao tem condiçoes de responder a uma humanidade que nao sabe mais como definir a si própria, em termos de religiao, de moral, de metafísica e de arte. Em resumo, o homem moderno nao sabe mais definir sua humanidade e construir uma civilizaçao à sua medida. O resultado disso é a explosao das estruturas sociais e familiares, e também das estruturas políticas (Hannah Arendt chamou isso de "o desaparecimento do espaço público"), e uma concentraçao, em todos os países, de grupos, de pequenas comunidades preocupadas com sua identidade, de "tribos". Daí a existência de grupos violentos do tipo neonazistas, que exprimem, por meio da violência bruta, sua angústia de viver ou simplesmente, de ser. Devemos refletir, em matéria de educaçao e de política, sobre um fato paradoxal: há 50 anos condenamos o nazismo e todas as formas de violência, em favor dos direitos humanos; ao mesmo tempo, nunca os direitos humanos foram tao violados. Nunca a violência urbana foi tao grande, seja ela real, nas ruas, ou virtual, nos filmes, nos programas de televisao e nos videogames.




Comentários

Atenção! Os comentários do site são via Facebook. Lembre-se de que o comentário é de inteira responsabilidade do autor e não expressa a opinião do jornal. Comentários que violem a lei, a moral e os bons costumes ou violem direitos de terceiros poderão ser denunciados pelos usuários e sua conta poderá ser banida.


;