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'Lula bajula ricos e bate nos fracos', diz sociólogo
Roney Domingos
Do Diário do Grande ABC
29/03/2003 | 23:46
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"Já é evidente que o presidente Luiz Inácio está bajulando os ricos e batendo nos fracos e indefesos, que são os funcionários públicos e os aposentáveis, o que lhe trará muitos problemas". A avaliação é do sociólogo José de Souza Martins, professor titular no Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Nesta entrevista em que faz um balanço dos primeiros 90 dias do governo Lula, que se completam na segunda-feira, Martins afirma:

1) Falta originalidade ao novo governo;

2) Lula tem sido poupado;

3) Não houve avanços internacionais como acredita o PT;

4) Existe uma confusão de papéis entre o PT e o governo;

e 5) Lula está dividido entre o presidente e o operário.

Martins é professor da Cátedra Simon Bolívar da Universidade de Cambridge (Inglaterra, 1993/1994) e fellow de Trinity Hall. Dentre outros livros, publicou A Sociedade Vista do Abismo (Vozes, 2002). 

DIÁRIO – Como o sr. avalia os primeiros 90 dias do governo Lula?
JOSÉ DE SOUZA MARTINS – Ainda é cedo para avaliar o governo do presidente Luiz Inácio, sobretudo na medida em que nada há, ainda, para ser avaliado quanto a resultados. É evidente que um governo com mais articulação já teria resultados a apresentar e comportaria uma avaliação inicial. A mais problemática impressão é a de falta de originalidade do novo governo. O que está funcionando é o que representa a continuidade do governo anterior. E o que está dando errado, como o Fome Zero e a reforma agrária, é por falta de continuidade em relação à política do governo anterior.

DIÁRIO – Acabou a chamada lua-de-mel com a imprensa e com a população?
MARTINS – Por força do específico carisma de Lula, se lua-de-mel houve, a lua-de-mel não acabou. Vai ficando evidente a tendência de expor as dificuldades e incongruências de conduta dos ministros, de pessoas próximas e de membros do PT e, ao mesmo tempo, poupar o presidente. O próprio presidente censura publicamente ministros e assessores, como especificamente tem acontecido no caso do Fome Zero, tentando criar uma imagem de ‘povo no poder‘ e de dedo em riste que o resguarda da ineficiência ou dos erros cometidos por aqueles que ele mesmo nomeou.

DIÁRIO – O anúncio do Fome Zero alcançou o paradoxo de ser o principal fato positivo e a maior fonte de críticas, inclusive internas, desde o início de governo. A que o sr. atribui essa dificuldade? O governo teria vendido facilidade demais?
MARTINS – O programa Fome Zero foi um item de campanha eleitoral, mais uma frase de efeito capaz de causar forte impacto. A eficácia sensibilizadora desse discurso levou à armadilha de dizer que um terço dos brasileiros passa fome, o que certamente não é verdade. E o problema localizado da fome em períodos específicos no Nordeste rural é um problema cíclico. O governo está confundindo pobreza com fome. O programa Fome Zero se baseia em estatísticas relativas aos municípios rurais e muito pobres. No entanto, o PT não parece dispor de informações sobre a ocorrência efetiva de fome e pobreza nas grandes cidades, porque os famélicos são diluídos nas estatísticas relativas às grandes concentrações urbanas, onde o problema é mais grave e menos visível, sobretudo nas populações que vivem em cortiços e em favelas. O PT não tinha e não tem dados sobre o vivencial da pobreza, que é um problema muito complicado, nem distingue entre pobreza, e suas carências, a desnutrição e a fome propriamente dita. O problema maior é que a dramaticidade da apresentação da causa desencadeou um efeito multiplicador de controle difícil: doações de todo tipo, boa parte das quais o governo nem sabe como utilizar, como caminhões e alimentos. A popularidade do programa e a falta de resultados o expõem a críticas diárias e a desastradas respostas diárias. Teria sido bem mais sensato, bem mais político e bem mais eficaz criar uma coordenação interministerial de combate à pobreza, sem nova burocracia nem novos salários.

DIÁRIO – A que o sr. atribui a paralisia que Lula e o PT vêem no governo nestes primeiros dias?
MARTINS – O PT é apenas nominalmente um partido político. Na verdade é constituído por um conjunto de facções partidárias e religiosas com orientação própria. Cada qual tem seu próprio programa não escrito e sua própria interpretação do que deve ser feito e do que significou a vitória eleitoral de Lula. A paralisia se deve sobretudo a esse defeito orgânico do partido. Além disso, o PT não tem quadros suficientes para governar e de fato não tem experiência em relação a problemas macroeconômicos e especialmente macrosociais. A experiência que tem, e quase sempre boa, é em relação a problemas sociais tópicos, nos municípios.

DIÁRIO – O diretório nacional do PT (reunido em março) avaliou em seu primeiro encontro depois da eleição de Lula que houve avanços na relação internacional e na conquista de apoio na Câmara e no Senado. O sr. considera que realmente houve vitória nessas áreas?
MARTINS – No plano internacional não houve avanço algum. Há muita expectativa externa, em torno de Lula, por conta da popularidade eleitoral do presidente. Ainda é a ressaca da eleição. No plano externo três pessoas têm agido como ministros do exterior, sem que se saiba com clareza qual a linha da política externa: o próprio Lula; o assessor especial de política externa, Marco Aurélio Garcia; e, finalmente, o ministro Celso Amorim, um diplomata de carreira que atua mais como bombeiro dos incêndios que os outros dois podem causar. No Fome Zero e na assessoria imediata do presidente, os problemas são grandes. Não só as trapalhadas envolvendo o ministro José Graziano da Silva, que é um agrônomo e economista competente, mas também as desencontradas declarações de seu assessor, que é também o assessor religioso do presidente da República (por incrível que pareça, ele tem um), como o definiu recentemente dom Mauro Morelli, bispo de Caxias (RJ). O desastre das declarações do governo quanto à Previdência dos funcionários públicos não pôde ser consertado pelos recuos sucessivos do ministro (Ricardo Berzoini) e do governo. Em conseqüência, sobretudo nas universidades, uma debandada de conseqüências irreparáveis está em andamento. Finalmente, se vitória houve na Câmara e no Senado, foi vitória da Câmara e do Senado.

DIÁRIO – Os líderes do governo reclamam da falta de articulação com os parlamentares. O PT pode conseguir uma relação estável com o Congresso?
SOUZA – A relação estável com o Congresso é sempre possível quem quer que seja o governante. Mas convém não esquecer de que o Congresso é, em boa parte, ainda constituído por representantes de bases locais, municipais e regionais, mais do que de categorias sociais e de projetos históricos concorrentes. Na história republicana do Brasil, nenhum governante tem conseguido governar numa relação de antagonismos com as necessidades de sobrevivência dessa modalidade de representação política, clientelista, baseada na troca de favores e de cargos.

DIÁRIO – Por que seria mais fácil acertar quando o problema está fora (como parece ter ocorrido na crise da Venezuela ou na boa repercussão da viagem de Lula a Davos) do que para resolver problemas internos como a logística do Fome Zero ou a aliança pragmática em torno das reformas?
SOUZA – Porque é mais fácil acertar na aparência, no teatral, do que no substantivo e no conteúdo. O teatral não afeta direitos nem interesses. Ir a Davos foi uma forma de relativizar a inevitável ida ao Fórum Social de Porto Alegre. Já quando se trata das questões substantivas, como a Previdência Social, o Fome Zero e a reforma agrária, tudo é mais difícil porque envolve os problemas de sobrevivência e de futuro de milhões de pessoas. Sem contar que, no plano externo, a imagem e a realidade de uma América Latina sem rumo tem contraponto positivo na continuidade socialdemocrata que o governo Lula representa em relação ao governo de Fernando Henrique Cardoso, uma espécie de estabilidade nas regras essenciais num quadro de democrática oposição de partidos.




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