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Livro reúne mitos indígenas sobre a criaçao
Do Diário do Grande ABC
29/12/1999 | 15:12
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No tempo em que Paricot trabalhava muito para criar o mundo, conta uma lenda dos índios aruás, as mulheres nao ficavam grávidas na barriga, mas sim na batata da perna. Foi o irmao de Paricot, o deus Andarob, o responsável pela gestaçao tal qual a conhecemos: um dia, enquanto o irmao construía o planeta, Andarob visitou a cunhada e quebrou o pote de óleo de urucum que ela guardava na vagina. A partir desse dia Paricot, o criador para a tribo de Rondônia, decretou que as mulheres "nao mais descansariam pelo dedo e sim pela vagina", como um castigo pela traiçao.

Sao histórias como essa, muitas delas com o enredo intrincado e com pitadas de intrigas de folhetim, que Betty Mindlin reuniu em "Terra Grávida' (Editora Rosa dos Ventos, 275 páginas, R$ 28,00).

O quarto livro da antropóloga segue a linha dos anteriores. Em primeiro lugar porque apresenta uma antologia de mitos indígenas levantada na pesquisa realizada no convívio direto com tribos indígenas brasileiras, principalmente aquelas observadas pelo Instituto de Antropologia e Meio Ambiente (Iama) do qual a autora é uma das fundadoras.

Depois por apresentar as narrativas, escritas pela primeira vez em português, pela voz dos narradores originais, integrantes dos sete povos (macurap, jabuti, aruá, arikapu, ajuru, kanoé e tupari) que contam as versoes ancestrais para o aparecimento do mundo, do sol, da lua, do dia, da noite, dos homens, das colheitas, das águas e de outros elementos do universo indígena. No novo livro, a autora preserva a linguagem dos índios narradores, o que aproxima a escrita da oralidade responsável pela sobrevivência dos mitos.

O fio traçado pela autora em 'Terra Grávida" é o da criaçao, o que também diferencia a obra das anteriores. Embora histórias sobre o surgimento das coisas também estejam presentes em "Tuparis e Tuparás, Vozes da Origem" e 'Moqueca de Maridos' (publicaçao que lança luz sobre o imaginário indígena acerca do erotismo e as disputas entre os sexos e que lhe valeu o prêmio de melhor conto/folclore da Associaçao Paulista dos Críticos de Arte, APCA, em 1997), em "Terra Grávida', o tema costura as narrativas, organizadas pelos objetos da criaçao, por sua ordem de aparecimento.

Assim, o livro abre com o capítulo dedicado às explicaçoes das sete tribos sobre o princípio (as primeiras pessoas, o aumento da populaçao, o surgimento da água, do fogo, da macaxeira, do sol, da lua) e é encerrado pelas versoes para o fim (a origem da morte, o aparecimento do caminho das almas, da cura).

Sao narrativas, que, como a autora esclarece na introduçao do livro, apresentam estruturas semelhantes. Mas ela observa ainda que essas coincidências estruturais nao se devem à proximidade geográfica dos índios que habitam "a mesma floresta" ( fronteira do Brasil com a Bolívia). Tratam-se de temas e de esqueletos comuns presentes nas chamadas histórias universais. É o caso, por exemplo, dos protagonistas da criaçao. Na comparaçao da autora, assim como na Bíblia, na qual o Criador fez o mundo convivendo "com seu duplo ou sombra", o Diabo, as lendas sobre a construçao do mundo transcritas em "Terra Grávida', trazem, na maioria, uma dupla de criadores, mas, entretanto, sem a mesma distinçao entre o bem e o mal.

Para a maioria do povos pesquisados, o mundo foi feito por uma dupla de irmaos, como Paricot e Andarob, dos aruás. Mas ainda que de forma mais sutil que a Bíblia, tais personagens sao apresentados em oposiçao: um tem mais poder, o outro, curiosidade; um é mais sossegado, o outro, mais inquieto.

É o caso também de Nambu e Beüd, a dupla de arquitetos do universo nas lendas dos índios Macurap. Enquanto Nambu, a quem os índios associam a imagem de Jesus, tem o poder de fazer qualquer coisa a partir do próprio pensamento, contanto que esteja em silêncio, Beüd é curioso e deseja as novidades projetadas pelo primeiro. A curiosidade de Beüd (associado à Sao Pedro pelos Macurap), rendeu ao mundo o milho, a macaxeira, o fogo, a água e todas as maravilhas da natureza cobiçadas pelo duplo do criador.

Uma das conclusoes da antropóloga sobre a coletânea vem dessa contraposiçao de personalidades: a inquietaçao e o castigo pela curiosidade ou erro representam um confronto necessário para o nascimento na grande maioria das lendas, como ocorreu com a traiçao de Andarob, que com um desastre deu origem à gravidez.

O mesmo esquema aparece na história de Palop e Palop Leregü (Nosso Pai e Nosso Pai de Roupa), criadores na mitologia suruí. O primeiro é sábio e o segundo quer ser sabido. Entre as confusoes criadas pelo confronto dos dois personagens distintos, surge o mundo industrial - para esses índios, o deus vestido é o deus urbano.

Na introduçao, Betty faz referência às conclusoes de Marie-Louise Von Franz , discípula de Jung, que estudou contos de fadas e lendas de índios. Assim como nos mitos dos índios de Rondônia, a psicóloga detectou a funçao vital dos princípios negativos ou passivos para o surgimento do positivo e ativo no imaginário infantil e indígena, assim como o confronto é parte de toda a literatura mundial. "Mesmo na Bíblia, o conhecimento, considerado positivo no mundo atual, vem do diabo e da tentaçao", escreve a autora.

Mas Betty, que este ano trouxe um grupo de índios gavioes para dançar suas lendas em espetáculo de Ivaldo Bertazzo apresenta sua reuniao de histórias nao como uma tese que inclui a narrativa indígena na universal, uma questao resolvida em outros tempos. As lendas de "Terra Grávida', além de documentar culturas ainda desconhecidas do restante do País, sao histórias divertidas, dramáticas ou curiosas que, como escreveu Italo Calvino sobre sua reuniao de fábulas , "sao verdadeiras, pois sao uma explicaçao geral da vida", ou como acrescentou a antropóloga, "sao verdadeiras porque contêm uma verdade com um sentido profundo do que espera ser adivinhado".




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