Ela veio à cidade para receber o Prêmio da Paz, conferido anualmente pela Associação de Livreiros Alemães. Desde que um de seus antigos livros, O Conto da Aia (Rocco), publicado em 1985, alcançou um novo e estrondoso vigor mundial ao inspirar a série de sucesso The Handmaid?s Tale, a escritora de olhos azuis voltou a ser uma celebridade. "Foi o primeiro produto em streaming a ganhar um Emmy", comentou ela, em tom de orgulho, referindo-se ao prêmio americano tradicionalmente dedicado à TV.
Distópico, o romance tornou-se profético depois da eleição de Donald Trump, alçando Margaret a uma posição de profetisa. "O que o torna tão moderno é o retrato do totalitarismo americano", comentou. De fato, O Conto da Aia é ambientado em uma república em um futuro próximo. Lá, não existem mais jornais, revistas, livros nem filmes. Tampouco universidades. Extinguiu-se ainda a profissão de advogado porque ninguém tem direito a defesa - quem é considerado criminoso é fuzilado sumariamente e seu corpo é pendurado em praça pública, para que o apodrecimento escancarado sirva como exemplo e intimidação. Atos banais tornaram-se crimes, como cantar qualquer canção que contenha palavras proibidas pelo regime, como "liberdade". Nesse Estado teocrático e totalitário, as mulheres são as vítimas preferenciais, anuladas por uma opressão sem precedentes. O nome dessa república é Gilead, mas já foi chamada de Estados Unidos.
"Quando escrevi essa história, eu vivia em Berlim, nos anos 1980. O muro ainda dividia a cidade e nada indicava alguma mudança - mal sabíamos que, cinco anos depois, ele seria derrubado", observou. "Hoje, sentimos que é uma realidade possível. Vivemos uma era de mudanças, o que me faz lembrar dos anos 1930", comentou, referindo-se à fase de surgimento de líderes fascistas e populistas, o que culminou com a 2ª Guerra Mundial. "E o que surpreende os europeus é que isso também acontece nos EUA, sempre considerados um modelo de democracia."
Margaret referiu-se tanto à crise espanhola provocada pela tentativa de separação da Catalunha quanto aos constantes tropeços do governo Trump. Aliás, a fim de explicar o atual sucesso de O Conto da Aia, a autora se lembrou da tentativa do presidente americano e de alguns políticos em controlar os direitos femininos - no romance, as mulheres de Gilead não têm direitos e ainda são divididas em categorias, cada qual com uma função muito específica no Estado. À personagem Offred, por exemplo, coube a categoria de aia, ou seja, sua função resume-se à procriação, uma vez que uma catástrofe nuclear tornou estéril um grande número de pessoas.
"O Canadá se tornou o país onde os americanos buscam refúgio sempre que estão inquietos. É o que acontece com as mulheres hoje", disse Margaret que, indagada sobre o cristianismo, lembrou que as religiões de todo tipo tentam impor restrições às mulheres. "O propósito de todas as crenças é o de ter sempre muitos seguidores, daí a importância do papel feminino na procriação. Somente os shakers (seita religiosa fundada no século 8º, na Inglaterra, e famosa por seu comportamento frenético durante os cultos) não tentaram controlar os corpos das mulheres porque adotaram órfãos. Mas eles desapareceram rapidamente, devido à escassez justamente de órfãos", disse ela, ecoando mais um tema de seu romance.
Questionada sobre educação e cultura, a escritora ressaltou a importância da leitura. "Uma pessoa terá seu caráter forjado pelo que leu entre os 10 e os 20 anos de idade", acredita. "Li 1984 (de George Orwell) quando estava com 13 anos e, mais tarde, pensei em escrever algo semelhante, mas de forma diferente." O resultado é justamente O Conto da Aia, uma história assustadora, que leva o leitor a refletir sobre temas diversos, mas indispensáveis, como liberdade, direitos civis, poder, a fragilidade do mundo que se desenha hoje, o futuro e, principalmente, o presente.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.
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