Em cartaz desde a semana passada nos cinemas da cidade, "Segredos em Família" já está sendo descoberto pelo público. É um bom filme do espanhol Fernando León de Aranoa, um jovem diretor de 32 anos (nasceu em Madri, em 1968). Foi exibido com sucesso na 22.ª Mostra Internacional de Cinema, ficando entre os favoritos dos espectadores naquela ediçao do mais importante evento sobre cinema de Sao Paulo.

Aranoa é cria de Luis Buñuel, cujo centenário de nascimento se completa justamente este ano. Aranoa fez uma comédia de imposturas que evoca um dos clássicos de Buñuel, "O Anjo Exterminador". Ambos baseiam-se no ditado espanhol que diz que, depois de 24 horas, cadáveres e convidados sempre cheiram mal. Nada mais oportuno do que discutir o conceito de família na virada do milênio. É o que fez Sam Mendes no grande vencedor do Oscar deste ano, o supervalorizado (nao é tao bom) "Beleza Americana". É o que também faz Paul Thomas Anderson no intrigante "Magnólia", um dos melhores filmes em cartaz na cidade. E nao se pode esquecer de Tomas Vinterberg em "Festa de Família" e da brasileira Tata Amaral em "Através da Janela". É o que também faz Aranoa. Seu filme começa com uma festa familiar. Santiago (Juan L. Galliardo) é o protagonista. Está de aniversário e todos, a mulher, os filhos, a mae o enchem de presentes. Essa primeira cena já revela tensao.

Santiago nao gosta do presente do filho e exige que o menino seja trocado por um tipo menos gordo e mais parecido com ele. O filme avança contando a história dessa família, temperada por sugestoes de incestos (o irmao dorme com a irma). Nao se iluda com as aparências. Aranoa quer justamente subverter o conceito tradicional de família. Até certo ponto, verifica-se com esse filme uma situaçao parecida com a de "O Sexto Sentido".

Nada de horror (exceto o horror da realidade, filtrado pelo humor), mas enquanto o desfecho do hit com Bruce Willis dá novo sentido à trama, que tem de ser vista sob outra ótica, a partir da revelaçao do fim, nao é preciso esperar até a última cena de Aranoa para perceber os signos que redimensionam seus segredos em família. É por meio deles que se justifica uma frase um tanto enigmática do diretor sobre o filme. Ele diz que "Segredos em Família" se explica como as fantasias infantis, em que se inventam ou se melhoram as famílias de acordo com preferências próprias e a imaginaçao.

O próprio Buñuel com certeza se divertiria com a mistura de crueldade e fantasia com que Aranoa olha a família. É a estréia do diretor no longa. Seu curta "Sirenas" é um dos mais premiados da história do cinema na Espanha. Aranoa também é roteirista de prestígio. O roteiro de "Enfim Sós" foi considerado o melhor de 1995 pelo Círculo de Escritores Cinematográficos de Madri. A atividade do roteirista pode ser percebida na estruturaçao das cenas de "Segredos em Família", nos diálogos muitas vezes ríspidos e surrealistas.

Engenhoso como diretor e roteirista, Aranoa é mais interessante do que outros jovens diretores espanhóis da atualidade. Ele parece mais enraizado numa tradiçao picaresca do que seu compatriota Alejandro Amenábar, o diretor de "Morte ao Vivo" (Tesis, no original), que recorreu aos snuff movies para mostrar o culto à violência na sociedade espanhola dos anos 90. Aranoa vê a família como teatro. É tudo parte de uma representaçao. Dessa maneira, ele vai além da crítica à célula-mater da sociedade e discute também, como bom diretor contemporâneo, a própria linguagem.

"Segredos em Família" nao é nota 10, mas mostra que uma comédia pode ser comunicativa sem abrir mao da inteligência e comporta mais metáforas do que o público está acostumado a ver nas produçoes americanas similares. Diante desse filme você terminará dando razao aos que consideram Aranoa um dos mais promissores talentos do novo cinema da Espanha.