Cultura & Lazer Titulo
Marginal pioneiro
Alessandro Soares
Do Diário do Grande ABC
09/02/2007 | 20:05
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Intuição e ousadia eram marcas de Ozualdo Candeias (1922-2007), cineasta morto quinta-feira aos 88 anos. Se o cinema marginal teve um início e um fundador, são eles A Margem (1967) e seu diretor autodidata. A história: renegados urbanos – um louco manso, uma prostituta que sonha usar véu no altar, um maltrapilho com jeito de fidalgo, uma moça que vende café na rua – perambulam por escombros, igrejas em ruínas, matagais às margens do rio Tietê, enquanto aguardam a morte anunciada.

A Margem foi feito com poucos recursos, sobras de negativo, marmita ruim, sem cachê. Candeias era diretor, produtor, roteirista, motorista do jipe que transportava tudo e todos e operador de câmera. Inspirado em notícias sensacionalistas, e ignorado pelo público, tornou-se objeto de estudos como um libelo poético e existencial sobre os excluídos.

O título batizou o movimento de cineastas paulistas como Candeias, Rogério Sganzerla, Carlos Reichenbach, Ody Fraga que atuavam em produtoras de cinema sediadas na rua do Triunfo, a Boca do Lixo (região hoje chamada Cracolândia, Centro de São Paulo) e que praticavam um cinema inventivo, nada da estética clássica da Vera Cruz nem do Cinema Novo, e que antecedeu as produções comerciais da pornochanchada. O foco era o submundo e os excluídos, improvisando ausência de recursos com criatividade, sem medo da imperfeição.

O mais marginal deles era Candeias. Menos por seu radicalismo e mais por sua solitária opção por não integrar movimento algum, nem seguir seus pares à época, distanciando-se da crítica, dos mecanismos de produção e das políticas de cinema. Trilhou seu caminho à margem da margem, rejeitando rótulos de primitivista ou de maldito. Optou por registrar histórias que ouvia ou testemunhava nas ruas, de onde tirava seus tipos preferidos, os deserdados, recriando-os em filmes, muitos exibidos em sessões clandestinas.

Candeias aprendeu cinema na marra, lendo manuais de câmera e assistindo filmes brasileiros nos anos 50 e 60. Isso porque, certo dia, queria filmar discos voadores no interior, segundo relatos que ouvia na época. Não viu OVNIs, mas criou filmes não-identificados em gêneros cinematográficos, optando por cenários exclusivamente brasileiros.

Ex-metalúrgico, ex-caminhoneiro, ex-sargento da Aeronáutica, valia-se da intuição para filmar, mas tinha uma sofisticação peculiar. Em A Herança (1971), adaptação da peça Hamlet de William Shakespeare que se passa em uma fazenda-reino, não há diálogos, só grunhidos e música.

Em As Bellas da Billings (1987), marginalizados perambulam das ruas do Centro até a represa, onde viviam as Bellas – alusão a um falso tom italiano no sotaque de um deles –, mãe e duas filhas que viviam de catar restos de comida para se alimentar e às galinhas. Candeias aborda a prostituição, numa advertência contra o destino sem futuro de jovens excluídas.

No média-metragem Zézero (1974), um de seus temas prediletos, a migração nordestina para São Paulo, um lavrador tem visão de uma fada que o convence a ir para cidade grande, onde só consegue subemprego na construção civil.

No subtexto, Candeias criticava o uso político da Loteria Esportiva pelo governo militar, que embutia na população de baixa renda a mentalidade de que a melhora de vida só viria acertando os 13 pontos. A censura da época não percebeu. Em seus filmes havia no mínimo duas imagens: a que se via e a que Candeias queria dizer.

À época da mostra sobre sua carreira, em 2002 no Centro Cultural Banco do Brasil em São Paulo, Candeias disse ao Diário que “houve um momento na história que um durango igual a mim fez 11 longas. E quase tudo com dinheiro privado. Hoje, todo mundo corre atrás de subsídio do Estado”. Deixou um roteiro inédito sobre pessoas que dialogam com entidades fantasmas.

Eugênio Puppo, da Heco Produções, realizador da mostra no CCBB, pretende reeditar o catálogo e fazer outra retrospectiva, além de uma exposição de fotos que Candeias produzia nos últimos anos, pois não filmava desde O Vigilante (1992). Enquanto dirigia filmes, não temia inventar para se expressar.



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