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Canal Brasil comemora os 80 anos de Anselmo Duarte
Do Diário do Grande ABC
19/04/2000 | 14:55
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Ainda dói. Aos 80 anos, que completa sexta-feira, o cineasta Anselmo Duarte recebe homenagens como a do Canal Brasil (Net/Sky), que programou para esta quinta-feira, às 22 horas, a exibiçao de um "Retratos Brasileiros" especial, dedicado ao único diretor brasileiro a vencer a Palma de Ouro no Festival de Cannes (foi em 1962, com O Pagador de Promessas). Logo em seguida, a emissora inicia com "Tico-Tico no Fubá", de Adolfo Celi, um ciclo de filmes de (ou com) Duarte que vai prolongar-se até junho, sempre às quintas-feiras. As homenagens massageiam o ego.

Nos últimos anos, Duarte acostumou-se com elas, desde que, em 1997, foi convidado especial em Cannes, que no ano do 50º festival resolveu reverenciar todos os autores premiados com a Palma, formando com eles um colegiado para escolher um grande artista do cinema que nunca recebeu o prêmio (o escolhido foi Ingmar Bergman). Duarte recebe as homenagens com naturalidade. Sabe que merece. Mas ainda se inflama quando fala da ingratidao da imprensa, da campanha que contra ele moveram os diretores do Cinema Novo. "Houve época em que eu ficava doente, só de pensar nisso", confessa.

O tempo e a distância serenaram seu ânimo, mas a ferida nao cicatrizou. Ele admite que ainda fica nervoso ao tratar do assunto. Seu demônio tem nome - Gláuber Rocha. "Ele me feriu muito, mas nao consigo deixar de gostar dele, pois o Gláuber era um sujeito encantador; sabia como cativar as pessoas". O início da relaçao foi cordial. Duarte filmava "O Pagador de Promessas em Salvador", Gláuber seguia as filmagens, escrevia textos simpáticos, chegou a peitar o autor da peça, Dias Gomes, que, no Rio, lamentou ter vendido os direitos para Duarte em vez de fazê-lo para Hollywood. A situaçao mudou depois da Palma de Ouro. Duarte, que nao pertencia aos quadros do Cinema Novo, virou inimigo.

"Fizeram de tudo para denegrir a minha conquista, que foi referendada em vários outros festivais naquele ano; isso ninguém conta".

Exílio - Octogenário, Duarte continua morando em Salto, interior de Sao Paulo, numa cobertura no edifício mais alto da cidade. Dali ele vê diariamente o Tietê, que já foi um rio cheio de vitalidade, mas hoje já está poluído desde aquela regiao. Construiu outra casa em Itu, ali pertinho, que agora quer vender. Aliás, quer vender tudo e mandar para o Rio, onde moram as filhas e ele tem netos. Desistiu de fazer o filme que anunciava em 1997, uma co-produçao com Portugal e a França. "Tenho parceiros interessados, mas estou desanimado", confessa. Teme o reinício das campanhas de descrédito. Acha que ninguém vai interessar-se em buscar qualidades no seu trabalho, preferindo apontar só os defeitos.

Foi assim, para desacreditá-lo, com "Veredas da Salvaçao", logo após a Palma. Duarte defende o filme com paixao. Ainda guarda os recortes com as críticas elogiosas que recebeu no Festival de Berlim. No Brasil, caíram de pau em cima do filme. Tudo isso dói. Seu discurso bate na tecla de que santo de casa nao faz milagre, que o brasileiro nao tem memória, nao cultiva seus artistas. Nao é verdade. A prova é que Duarte, atualmente, é tema de um documentário realizado por seu filho, Anselmo Duarte Jr. "De Salto para a Tela" já tem quatro horas e será exibido em capítulos na TV. Outro projeto é de Sylvio Back, que pretende transformar Duarte no personagem final de sua planejada pentalogia do exílio - uma série de cinco filmes sobre brasileiros e estrangeiros exilados no país.

O primeiro é "Cruz e Sousa, O Poeta do Desterro", do belo docudrama que deve estrear em breve. Esse homem é uma lenda e nao apenas por ter recebido a Palma de Ouro em Cannes. Duarte foi o maior gala do cinema brasileiro nos anos 40 e 50. Fez filmes na Cinédia, na Atlântida, na Vera Cruz. Mas sempre quis ser mais do que uma estampa na tela. Menino, ele freqüentava matinês e já sonhava em fazer filmes, sem nem saber qual era a funçao do diretor. Queria ser projecionista, como o irmao - curiosamente chamado de Alfredo, como o projecionista de "Cinema Paradiso", de Giuseppe Tornatore. Trabalhava como jornalista, na área de finanças, quando soube que um diretor italiano, Pier Alberto Pieralisi, buscava talentos para o cinema. Anselmo foi fazer o teste. Consistia em avançar para a câmera dizendo um texto. Ele esqueceu o texto, deu um branco na sua cabeça. Pieralisi gritava atrás da câmera: "Parla, dice qualcoisa". Duarte desembestou a falar, em italiano, que conhecia. Foi seu batismo com a câmera. Outro o teria chutado, corrido do estúdio. Pieralisi viu as qualidades - a boa estampa, a naturalidade. Aprovou Anselmo. Iniciaram uma longa e duradoura amizade.

Favoritos - Ele tem seus filmes preferidos, na carreira de ator e diretor. Como diretor é "O Pagador", indiscutivelmente, embora defenda até a morte "Veredas da Salvaçao". Como ator, analisa as diferentes fases. Dos filmes na Vera Cruz prefere "Sinhá Moça", de Tom Payne - agrada-lhe seu discurso final, de forte cunho abolicionista. Mas destaca a criaçao como Zequinha de Abreu em "Tico-Tico no Fubá", que passa esta quinta-feira. "Foi uma composiçao para alguém que, como eu, só sabia ser natural; tive de encarar o desafio de criar um verdadeiro personagem e real, ainda por cima".

Na Atlântida, nao pensa duas vezes, o favorito é "Carnaval no Fogo". Diz que o diretor Watson Macedo lhe deu carta branca, ele reescreveu o roteiro, filmou números musicais. "Nao me dao crédito por isso e nem eu queria, na época; queria fazer as coisas, que elas ficassem bem, que o filme fosse bonito, sem me importar com reconhecimento; quem fez o filme comigo sabe que foi assim". O cinema levou-o pelo mundo. Estudou em Paris, no entao Institut des Hauts Études Cinématographiques, o Idhec.

Em Paris, seduziu Cristiane de Rochefort, que fazia os credenciamentos para o Festival de Cannes. Ela o credenciou como jornalista. Duarte pisou muitas vezes na Croisette, nos anos 50, antes de voltar para arrebanhar a Palma, nos 60. Era amigo de Novaes Teixeira, o correspondente que cobria Cannes para o jornal "O Estado de S.Paulo". O próprio Teixeira, ele lamenta, tentou denegrir a conquista da Palma de Ouro. Ficou buscando justificativas sobre porque o prêmio nao foi para os grandes concorrentes daquele ano, nomes que pertencem à história do cinema - Luis Buñuel (O Anjo Exterminador), Michelangelo Antonioni (O Eclipse) e Robert Bresson (Le Proc s de Jeanne d'Arc), para só citar três exemplos.

Entre os fatos memoráveis de sua vida como cineasta, Duarte cita a amizade com Federico Fellini. "Vimo-nos poucas vezes, duas ou três, mas havia uma relaçao forte", diz. Ele está lendo a autobiografia do mestre italiano. Esperava encontrar-se como personagem. Fellini ficou impressionado quando ele disse que tinha certeza de que ia ganhar a Palma de Ouro. "Anselmo, ninguém pode ter certeza disso", ponderava Fellini. Era fácil falar em certeza depois de já haver recebido o prêmio. Mas Duarte tinha certeza, sim. Nos seus anos em Cannes, ele analisou todos os filmes participantes e os vencedores, detectou tendências e preferências.

Sabia que tinha de fazer um filme em preto-e-branco, de tema humano e original, numa linguagem que fosse ao mesmo tempo brasileira e universal. Encontrou todos esses elementos na peça de Dias Gomes, que transformou em filme. Duarte arrisca-se a parecer arrogante, mas fez "O Pagador" para vencer e venceu. Começou aí, com a vitória, a sua via-crúcis. Duarte chega aos 80 anos mais sábio em relaçao ao próprio passado. Diz que hoje consegue rir de tudo o que lhe aconteceu. Ri, mas é um riso amargo.




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