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Discursos perigosos

Você já deve ter se deparado com aquela figura que adora contar...

Carlos Ferrari
22/09/2015 | 07:00
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Você já deve ter se deparado com aquela figura que adora contar sobre o que tem feito de bom por seus próximos, pela humanidade como um todo e até pelo planeta.

Geralmente são pessoas acima de qualquer questionamento e fáceis de encontrar em festas, velórios, filas ou que até mesmo acabamos conhecendo em meio a um compromisso de trabalho. No entanto, o fato que sempre se repete é que tal personagem fala com a propriedade de quem é, nada mais nada menos que o fã número 1 de si mesmo. Até aí, nenhum problema, mesmo porque está na moda se dizer e cantar: “Esse cara sou eu.”

Mas esquecendo um pouco do ingrediente (alto nível de autoestima), tem um outro aspecto nessa história que, infelizmente, na maior parte das vezes, acaba passando desapercebido. Refiro-me aos discursos, que mais que uma atitude que possa ser questionada ou até mesmo considerada pedante ou engraçada, traz uma série de equívocos e preconceitos que reforçam paradigmas totalmente adversos a uma sociedade mais justa, solidária e verdadeiramente democrática.

A ideia de trazer para nossa conversa tal reflexão, não tem por objetivo culpabilizar portadores de tais discursos, mas sim discutir os danos que tais falas repetidas podem produzir em nossa caminhada para conquistar melhores patamares de cidadania.

Comecemos tomando por exemplo aquele seu amigo que sempre fala de peito estufado, mais alto que de costume, para que ninguém possa deixar de ouvir: “Eu não jogo lixo pela janela do carro e, na praia, eu posso dizer com orgulho que jamais deixei qualquer tipo de sujeira.”

Também tem aqueles que, a cada encontro, não perdem a oportunidade de relembrar as velhas boas ações. Contam de novo a história do dia que ajudaram aquele ‘ceguinho’ a atravessar a rua e do momento da abdicação do lugar no assento do banco de ônibus para aquela gestante que ninguém havia notado.

Compartilhar o que temos feito de positivo é sempre muito bom, porém, o problema pode estar na forma de fazer isso. Tais colocações, por vezes, transformam obrigações básicas de um cidadão em grande virtude a ser exaltada.

A mídia em geral replica tal postura, por vezes reverenciando determinadas personalidades públicas, como artistas, políticos e empresários, pelo simples fato de terem uma conduta honesta em seu ramo de atividade.

Nesta linha temos como exemplo parlamentares que participam assiduamente de suas atividades. Vejam que além da justa remuneração e do privilégio de terem sido reconhecidos e eleitos como representantes legítimos por seu povo, pelo simples fato de não se ausentarem com frequência do trabalho, acabam entrando em rankings de conceituadas revistas e jornais, que colocam o cumprimento de tal dever como grande diferencial dos congressistas.

Os discursos que exaltam obrigações básicas não são danosos apenas pela confusão que transforma compromissos de cidadania em virtudes classificadas como raras. Tais falas também atentam contra o espírito de solidariedade, essencial para que possamos atingir avanços na conquista de níveis cada vez mais elevados de civilidade.

Há quem diga que em dias de tanta notícia ruim, cabe sim exaltarmos boas atitudes. Pessoalmente concordo, porém, talvez nos esteja faltando ressignificar nossos critérios, afinal de contas, chega a ser piegas ouvir uma empresa aérea se vangloriando por cumprir o horário em boa parte de seus voos.

Celebremos grandes feitos e contemos com naturalidade nossas boas histórias do dia a dia. É sempre bacana lembrar de Sêneca, que nos brindou com a seguinte reflexão: “A virtude, embora oculta, deixa seus vestígios para quem dela é digno.”

* Carlos Ferrari é presidente da Avape (Associação para Valorização de Pessoas com Deficiência), faz parte da diretoria executiva da ONCB (Organização Nacional de Cegos do Brasil) e é atual integrante do CNS (Conselho Nacional de Saúde). 




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