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Um bigode para sempre!

O homem está inerte. Seu peito se move por causa da máquina...

Rodolfo de Souza
25/06/2015 | 07:00
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O homem está inerte. Seu peito se move por causa da máquina que o impele a mover-se. Na verdade, o ventilador respira o homem que ali se encontra prostrado. Seu rosto inchou e as tiras o deformaram.

Todo o aparato tecnológico que sustenta sua vida possui sons e movimentos como se respirasse também. São braços que empurram, que conduzem o ser, realizando com destreza e determinação o seu trabalho de fazer palpitar o coração extenuado.

Aparentemente o homem não se importa. Está sereno e, de fato, desistiu de sofrer com as agulhadas e com fios e grossas mangueiras a ultrajarem o organismo frágil. Ele não se incomoda mais. É indiferente a tudo que o espeta e o cerca, embora continue habitando esta planície como eu e você.

O quadro é estável – proclama o médico onisciente. Descreve para os leigos os detalhes técnicos de todos os males que assomam e assolam o paciente repleto de paciência. Conclui, dizendo que o enfermo é muito velho, o que torna as coisas mais difíceis. Relata os pormenores de todos os esforços da equipe, sem admitir, em momento algum, a impotência e a fragilidade do ser humano que não consegue curar o semelhante. Vontade também é remédio, ao que tudo indica, meio em falta. Na prateleira, teria cedido lugar aos medicamentos feitos para salvar gente jovem.

É esse o quadro, afinal. Mas no quadro pintado por este escritor, que nem de pintura entende, a vida começa com a alegria do nascimento e termina quando, num belo dia de sol, o sistema cessa de funcionar, assim, bestamente. Não há dores em suas cores, tampouco agonias, demências, súplicas... Somente o encerramento de uma etapa, quiçá o início de outra. Mas o homem insiste e persiste.

Todavia, são duras as regras do jogo. É possível até que o sofrimento lhe tenha sido incluído para dar tempero a isso tudo ou, provavelmente, porque não aprendemos ainda a difícil lição da vida. A cartilha se nos afigura estranha.

Mas o velho está ali naquele leito patético, posso daqui observá-lo com suas mãos que não acenam. Estão paradas e inchadas como sapos. Seu aspecto assustador depõe contra a ideia de que tudo acabará bem e as pessoas voltarão a desfrutar do convívio dele.

Seu corpo magro e estático, envolto em fios, talvez anuncie a chegada de outro tempo que ninguém sabe. E a esperança esbarra no antigo clichê ‘ele já é de idade’, que manda conformar-se, porquanto não fomos contemplados com a eternidade e seria presunção demais cobrá-la do Criador. Mas não quero que se vá! – grita o peito amargurado. Oração que por certo já cansou os ouvidos divinos.

O velho bigode, marca registrada acima da boca ferida, encontra-se agora meio desmoralizado debaixo de elásticos e fitas adesivas. Mas ainda impõe respeito. Isso sim! A despeito do fato de continuar imóvel o homem e seu garboso bigode. Recusa-se, por fim, a abrir os olhos e sua boca se calou para as gargalhadas e as pilhérias que um dia divertiram tanta gente ao seu redor.

Talvez tenha descoberto a verdadeira piada que é esta vida e não veja graça nenhuma nela.

* Rodolfo de Souza nasceu e mora em Santo André. É professor e autor do blog cafeecronicas.wordpress.com

E-mail para esta coluna: souza.rodolfo@hotmail.com. 




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