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Carandiru: sobreviventes voltam ao 'museu do inferno'
Renato Frutuoso
e Rogerio Odorizzi Tonello
Do Diário OnLine
21/09/2002 | 19:16
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 Zelito observa o que restou da Casa de Detenção/Foto: Rogerio Odorizzi TonelloAinda marcado pelo medo, Zelito nega-se a dizer seu nome completo. O máximo que se permite dizer é: "só Joselito, vulgo Zelito". Nesta sexta, ele realizou uma espécie de sonho. Depois de quatro anos, ultrapassou novamente o pesado portão da Casa de Detenção de São Paulo, no Complexo do Carandiru. Desta vez não devia nada à Justiça - já cumpriu sua pena de cinco anos e quatro meses por assalto à mão armada. "Eu venci o inferno. Queria voltar aqui para ver isso no chão". Assim como Zelito, a maior parte das cerca de mil pessoas que esteve nesta sexta na Casa de Detenção, primeiro dia aberto à visitação pública, tem o Carandiru em sua história.

Eram ex-detentos, familiares que cumpriram por anos a dura rotina de visitas, e ex-funcionários. E mais alguns curiosos, que queriam conhecer de perto o palco do massacre do Carandiru, em 1992, quando 111 presos foram mortos durante uma rebelião pelo Batalhão de Choque da Polícia Militar.

O Governo do Estado decidiu abrir as portas da Casa de Detenção antes da demolição de cinco dos nove pavilhões - os que ficarem em pé integrarão o Parque da Juventude, complexo que pretende reunir lazer, cultura e serviço à população. Mas não esperava, e portanto não se preparou, para a demanda.

 Fila na porta; mais de mil pessoas foram visitar a penitenciária/Foto: Rogerio Odorizzi TonelloO que se viu nesta sexta foram cenas que chegaram a lembrar rebeliões, com empurra-empurra, xingamentos e pessoas amontoadas nos portões, pressionando a segurança para abri-los à força.

O maior problema foram justamente os curiosos. Adolescentes provocaram tumulto dentro dos pavilhões, depredaram algumas celas e chegaram a roubar documentos e armas expostos pela administração. "Estou brincando de ser preso", disse I.C.B., um estudante de 16 anos que carregava "de lembrança" um quadro que encontrou sob a cama de uma das celas. Ao seu lado, M.T, 17 anos, batia com uma panela na grade, como se estivesse protestando. "Vi isso na TV uma vez", foi sua justificativa. "No começo eu fiquei com um pouco de medo de entrar na cela, porque tinha um troço ruim no ar. Mas depois entrei, por zoeira".

A confusão foi tanta que a administração resolveu fechar o Pavilhão 7 vinte minutos depois da abertura, porque os funcionários da segurança simplesmente não conseguiam controlar o acesso de pessoas e a gritaria nos corredores. O Pavilhão 2, o outro que estava aberto à visitação, teve liberado somente o térreo e o primeiro andar, que haviam sido preparados para receber o público.

"Engraçado, a vida inteira as pessoas rezavam para sair daqui; agora todo mundo briga para entrar", disse Emerson Santos, um agente penitenciário que tentava controlar uma multidão na porta do Pavilhão 2. O Governo do Estado irá revisar a organização das visitas, que devem acontecer de terça a domingo, somente após agendamento.

 Adolescentes 'brincam de ser preso'/Foto: Rogerio Odorizzi TonelloDa Divinéia, espaço onde os presos antes tomavam sol, a impressão que se tinha é que a Casa de Detenção havia 'ressuscitado'. As janelas estavam lotadas, com jovens amontoados nas grades, gritando e acenando. "Eles não sabem o que estão fazendo", refletia Sergio Luis Ferreira, 56 anos, o Jimmy Cliff.

Sobrevivente do massacre de 1992, Jimmy resolveu voltar ao Carandiru para "acertar as contas com o passado", como definiu. "Durante sete anos, descobri como é viver sem lei, como é viver no inferno", contou. O ex-detento acabou servindo de guia para um grupo de visitantes. "Aqui era a cela do castigo. Só cimento. Os carcereiros colocavam a gente pelado aqui e desciam o ferro (eram espancados). Depois, nos largavam por um monte de dias. A comida vinha dia sim, dia não, e só restos", explicava, para em seguida ficar em silêncio por alguns segundos, talvez relembrando momentos que passou no "inferno". Por várias vezes, as lágrimas escorriam pelo seu rosto.

 Zelito observa o que restou da Casa de Detenção/Foto: Rogerio Odorizzi TonelloJimmy Cliff passou um bom tempo observando a exposição organizada pelo artista plástico Siron Franco. São dezenas de portas, com cerca de 200 quilos cada, pintadas pelos detentos. Elas estão enfileiradas no pátio do banho de sol, e trazem desde paisagens e escudos de times de futebol a reproduções de Nossa Senhora Grávida e do terrorista Osama Bin Laden. "Quem fazia isso eram os nóias (viciados em drogas). Pintavam em troca de maconha e cocaína", revelou o ex-detento.

Os 'nóias' sempre traziam problemas no dia-a-dia da Casa de Detenção, segundo Jimmy Cliff. "Eu mesmo vi uns quatro serem mortos na minha frente", contou. De acordo com o ex-detento, os viciados faziam dívidas com traficantes, que eram quitadas após as visitas de fim de semana. "Os parentes traziam o dinheiro e, quando iam embora, rolava a treta se o sujeito não pagava", disse, referindo-se ao acerto de contas à base de facadas, estiletadas e pauladas. A partir do surgimento das facções criminosas dentro do presídio, a violência aumentou. "Nem o horário de visitas eles respeitavam mais. Matavam na frente dos parentes mesmo".

Tanto para Jimmy Cliff quanto para Zelito, a idéia de fazer um espaço de convivência e lazer ali é péssima. "Não adianta colocar umas árvores e brinquedinhos aqui, porque esse lugar está marcado pela desgraça", disse Zelito. Jimmy tem outra idéia. "Eles podem fazer o museu do inferno aqui".

O próprio Jimmy fez sua parte como guia, na pele de um sobrevivente desse inferno chamado Carandiru. "Vocês estão vendo essas paredes", perguntou a um grupo que o acompanhava dentro de uma das celas. "Se vocês são pais de família, pelo amor de Deus, cuidem de seus filhos para que eles não entrem em um inferno como esse. O crime não compensa. Se eu tivesse uma mãe ou um pai para me dar pauladas quando comecei no crime, teria criado juízo, e não vindo parar aqui".




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