Muito já se especulou sobre os estragos positivos que gênios do passado fariam se atuassem nos dias de hoje. Imagine Pelé, em sua melhor forma, jogando com chuteiras, uniformes e materiais esportivos de última tecnologia. Imagine Ayrton Senna guiando os carros que hoje quase tudo fazem pelos pilotos.
Agora imagine Carmen Miranda cantando com a nitidez garantida pelos novos equipamentos de gravação e com um acompanhamento refinado, inédito e moderno, feito por músicos competentes da atualidade. Esse é o resultado que se ouve em Carmen Miranda Hoje (Biscoito Fino, R$ 34,90 em média), projeto encabeçado pelo cavaquinista Henrique Cazes e pelo jornalista e biógrafo da Pequena Notável, Ruy Castro.
A ideia surgiu no começo do ano passado. E nada mais justo que a atual e as futuras gerações possam escutar essas novas gravações, já que, na época dos registros originais vivia-se um período de absoluta idolatria da voz, com o acompanhamento instrumental sendo relegado totalmente ao segundo plano.
Era a famosa Era do Rádio, em que a potência de decibéis elevados dos gogós de nomes como Francisco Alves, Orlando Silva, Carlos Galhardo e Vicente Celestino dominava a cena musical. Era o tempo de reverência ao bel canto.
Assim, muito se perdia da riqueza harmônica e rítmica das composições de Assis Valente, Sinhô, Herve Cordovil, Ary Barroso, Dorival Caymmi, Ismael Silva, Nilton Bastos e Sylvio Fernandes (o Brancura), entre tantas feras do Estácio. As bases musicais eram mal equalizadas, se embolavam completamente, formando uma verdadeira massa sonora, sem distinção de agudos, médios e graves.
Por isso, Carmen Miranda Hoje dá uma aula de como se deve tratar o tesouro do patrimônio musical da segunda metade da década de 1930, época em que a cantora havia trocado a Victor pela Odeon e estava em seu auge.
Ponto louvável do projeto foi ter mantido o acompanhamento original - sem eliminá-lo -, o deixando mais encorpado, mais consistente e límpido, acrescentando também mais fraseados e comentários, além de outros instrumentos.
Para isso, Henrique Cazes fez os arranjos das cordas, tocou violão, cavaquinho, violão tenor mecânico - instrumento consagrado por Aníbal Augusto Sardinha, o Garoto -, e reuniu outros bambas, como seu irmão Beto Cazes (percussão), Luís Filipe de Lima (violão de sete cordas), Dirceu Leite (flauta, flautim, clarinete e sax tenor) e Ovídio Brito (cuíca) para remixar - no melhor sentido - as gravações originais.
Destaque para ...E o mundo não se acabou, O que É que a Baiana Tem, Adeus Batucada e No Tabuleiro da Baiana, que, com um acompanhamento mais cristalino, ratificam a modernidade de Carmen e que todos aqueles que vieram depois dela e cantaram da forma mais suingada - como reza a cartilha do bom samba -, têm uma dívida eterna com essa que foi uma das estrelas mais reluzentes da música brasileira de todos os tempos.
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