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Amazônia insustentável
Gislaine Gutierre
Do Diário do Grande ABC
14/11/2008 | 07:00
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"Chega de lendas, vamos faturar!", sentenciava um anúncio do governo militar brasileiro publicado em 1971 na revista Realidade. O poder público conclamava todos a ocupar, com projetos industriais, agropecuários ou de serviços, a Amazônia, sob ‘o aplauso e o incentivo' da Sudam (Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia) e do Banco da Amazônia. "Há um tesouro à sua espera. Aproveite. Fature. Enriqueça junto com o Brasil", argumentava.

Foi exatamente este anúncio, guardado desde sua publicação pelo fotógrafo andreense Pedro Martinelli, que serviu de ponto de partida para Gente x Mato (Jaraqui, 184 págs., R$ 50), livro independente em formato 27 cm x 42 cm cujo lançamento na região ocorre amanhã, às 10h30, na Superbanca (av. Lino Jardim, 1.168), em Santo André, com presença do autor.

Diferentemente de seus dois livros anteriores, este não foi criado em cima de um tema. Por meio das 168 fotos acompanhadas de certeiras linhas de texto, Martinelli mostra o que vem acontecendo desde a ‘convocatória' pública para a exploração do Eldorado dentro do Eldorado até hoje. "O livro tenta explicar porque estamos tão perdidos. Parece que tudo isso (a destruição da Amazônia) é uma surpresa, e a gente está de boca aberta", diz o fotojornalista, que já trabalhou no Diário e foi pela primeira vez à Amazônia nos anos 1970, para acompanhar a construção da Rodovia Cuiabá-Santarém.

EQUÍVOCOS
As imagens desnudam os contrastes. "Há uma avalanche de informações desencontradas, que não batem com a realidade", sentencia. O contra-argumento da informação massificada vem das ‘bordas', das ‘beiradas' que Martinelli percorreu com sua Laica e seus filmes. Como uma visão estrábica, de um lado há a Amazônia mítica, que deslumbra e fascina, e de outro, a Amazônia real, que encanta e deprime. As lentes de Martinelli buscam ajustar esse foco.

E é sobre as pessoas que têm seu dia-a-dia ligado diretamente à floresta que se volta sua câmera. É por meio deles que se desentranha essa realidade. São imagens como a de um caboclo sentado num banco, ao lado de uma paca morta - seu alimento e principal moeda de troca; um garoto saltando para a margem de um rio onde troncos de derrubadas ilegais flutuam pela correnteza até serem ‘resgatados'. São fotos que mostram uma cultura que se perde e se torna caricatura de si própria: um índio no Xingu com símbolos do Vasco pintados pelo corpo.

"As pessoas não andam, não vão até lá. Fazem seminários dentro de hotéis e as informações de lá são repassadas", diz. "O conjunto de ações no mato é maior que a derrubada. O satélite não mede o quanto se quebram pedras para fazer muros, não mostra a extração predatória dos caranguejos, nem a extração da piaçava."

Segundo ele, o caboclo apenas entende que as coisas estão mais difíceis, mas tal qual seus antepassados que se deslumbravam com espelhos, eles agora sonham com o mundo apresentado de maneira eloqüente nas novelas do horário nobre. E se há ignorância no meio da selva amazônica, há também na outra, de pedra. A primeira foto do livro mostra dezenas de contêineres empilhados em Manaus e as pessoas ali, indiferentes ao que deu origem a tudo aquilo.

SUSTENTABILIDADE
Na esteira das contradições, o ‘pulmão do mundo' respira o ar da mais poluente forma de energia: a das termoelétricas. É queimando o óleo diesel dos geradores que os caboclos sonham com os acenos das moças de Ipanema e dos carros a percorrerem as ruas urbanizadas. "Por que temos de fabricar TV em Manaus com óleo diesel?", questiona o fotógrafo. A pergunta que faz e que deixa com o livro é: ‘o que é auto-sustentável?'.

Martinelli se confessa desanimado com a situação. Tanto que acredita ter esgotado o tema Amazônia com seu trabalho. Só não quer deixar de trabalhar com o povo, ‘o vizinho do andar de baixo'. Isso não. Aliás, foi do mateiro Odair, também retratado neste livro, que Martinelli ouviu uma sentença que o acompanha até hoje. Naqueles idos de 1970, o então jovem fotógrafo comentava seu deslumbramento em relação à floresta. Ao que o matuto respondeu, estendido em sua rede: ‘É, Pedrão, é bonito e triste..."




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