Cultura & Lazer Titulo
Origens dos cappelletti
Sílvio Lancellotti
Especial para o Diário
22/07/2007 | 07:03
Compartilhar notícia


Conforme já registrei, no livro Cozinha Clássica, da editora L&PM, datado de 1999, duas lendas charmosas tratam das origens dos cappelletti.

Antes que eu as relembre, anote, precisamente, a grafia exata da palavra – cappelletti, o plural de cappelletto; ou, os chapeuzinhos, respectivamente um chapeuzinho no singular, no idioma da Bota, com dois pp, dois ll e dois tt.

Umbigos - A primeira das lendas sugere que, remotamente, aconteceu uma guerra entre deuses romanos. Pelo povo de Mòdena, na região da Emília-Romagna, Baco, Marte e Vênus. E, pela gente da vizinha Bologna, só Apolo e Minerva. Vantagem para Mòdena, três a dois.

Baco, porém, vivia bêbado. E, assim, na sua noite de guarda, adormeceu, ao invés de cuidar da proteção de Vênus. Um ousado cidadão se locupletou e resolveu investigar de que maneira a madame se abrigava na cama. Vislumbrou meramente o seu umbigo.

De toda maneira, inspiradamente, teve uma idéia magistral. Correu até a cozinha mais próxima e reproduziu, com massa de macarrão, um modelo do que havia percebido.

A segunda vem do Século XVI. Certa madrugada, um tal de Minghein Brentazzol, mercador de Bologna, surpreendeu a esposa, em plena cama, com o seu cozinheiro Pirulein, que mexia no umbigo da mulher com os seus dedos maliciosos. Flagrado, enquanto a senhora fingia dormir, Pirulein se explicou ao patrão: procurava inspiração para uma nova massa que serviria ao amo.

Parentes - Fantasias à parte, os cappelletti descendem dos tortellini que magos da cozinha da Emília-Romagna começaram a perpetrar, entre as cidades de Mòdena e de Bologna, por volta de 1600.

Então, se cortavam quadrados de mistura de farinha e de ovos, que eram recheados de carne de porco, talvez de mortadela, mais queijo raladinho, e especiarias – na verdade, filhos dos ravioli que já existiam.

Os pasteizinhos acabavam mergulhados em brodo, um caldo de carne de boi ou de galinha, e se ofereciam como entrada numa refeição.

Um sábio qualquer, daí, decidiu modificar o desenho. Dobrou cada um dos quadrados na diagonal e, ao redor do seu dedo mínimo, habilidosamente enrolou o resultado.

Mais engenhosamente ainda, selou as pontinhas e obteve o aspecto do chapeuzinho, ou cappelletto.

Os clientes do sábio adoraram – o conjunto pairava melhor dentro do brodo; flutuava, digamos assim, enquanto que os ravioli desciam ao fundo do prato. E a iguaria logo se disseminou.

Proliferaram, paulatinamente, plaga após plaga, vila após vila, e esquina após esquina, família após família, os procedimentos de preenchimento.

Além da base primordial dos chapeuzinhos, os mestres-cucas de plantão adotaram outros ingredientes – a gema de ovo, a ricota, a mozzarella, o purê de abóbora, as uvas passas, as frutas secas como as nozes e as amêndoas, ervas aromáticas, eventualmente um toquezinho de vinho e até mesmo de licor.

No decorrer das décadas, cada lugarejo adotou uma nomenclatura diferente para a sua iguaria característica.

Dos casonziei do Vêneto, recheados com espinafres, presunto cozido e canela, aos marubini da Lombardia, com castanhas na composição. Dos cialzons do Friuli, que inclusive levam pó de chocolate, aos culingiones da Sardenha, enriquecidos por queijo de leite de ovelha, ferozmente picante.

A seguir, a formulação obrigatória que a Academia Italiana della Cucina prescreve para os cappelletti/tortellini, a metodologia ideal de prepará-los, e as minhas duas receitas de sempre, a clássica, no brodo, e uma lancellottesca.

Receitas

CAPPELLETTI IN BRODO

Ingredientes, para uma pessoa: 2 1/2 xícaras, de chá, de caldo de galinha, ou de carne, devidamente temperado, a seu gosto. 100g de cappelletti, preferivelmente de massa fresca. 1 cálice de vinho tinto, preferivelmente bem jovem, como um Chianti da Toscana (aliás, razoavelmente barato, em relação aos equivalentes da Itália). Parmesão, raladinho em fios, para a finalização.

Modo de fazer: Levo o caldo à fervura. Agrego os cappelletti. Cozinho, até que atinjam o ponto al dente. Despejo o vinho tinto. Coloco os cappelletti e o caldo em um recipiente adequado. Na mesa, completo com o queijo ralado.

CAPPELLETTI INCASCIATI

Ingredientes, para uma pessoa: Azeite de olivas. 100g de cappelletti, de massa fresca, pré-prontos, um pouco antes do ponto al dente. 1 xícara, de chá, de polpa peneirada de tomates, condimentada com o sal necessário e com uma boa pitada de orégano. 50g de presunto cozido, finamente fatiado. 50g de mozzarella normal, raladinha. Abundante parmesão, bem raladinho, em fios.

Modo de fazer: Forro o fundo de uma travessa refratária, de tamanho apropriado, com azeite de olivas. Numa cumbuca, combino os cappelletti e a polpa de tomates, já condimentada. Numa travessa, deposito metade da massa. Cubro os cappelletti com o presunto. Por cima do presunto, espalho o restante da massa. No topo, coloco a mozzarella e cubro com o parmesão. Banho com mais azeite e tempero com mais orégano. Levo ao forno médio, pré-aquecido, para que a mozzarella se derreta bem – e para que o parmesão se gratine.

Observação: Você tranqüilamente pode reprisar esta alquimia com um outro tipo de massa recheada – e mesmo com as sobras do seu macarrão.

Saiba mais

A Formulação Compulsória da AIC

Preocupada com a multiplicação absurda das receitas dos tortellini e dos cappelletti, em 1974 a Academia Italiana della Cucina depositou, em uma entidade governamental de Bologna, aquela que acredita ser a formulação ideal da alquimia.

Na Bota, desde então, não pode utilizar a nomenclatura oficial quem não preservar, rigorosamente, todas as recomendações da AIC.

A massa tem de levar um quilo de farinha e oito ovos, numa espessura de 6/10 de milímetro, num quadrado de cinco centímetros de diagonal.

Para o seu interior, se combinam partes iguais de lombo moidinho de porco, de boa mortadela, de presunto cru, de parmesão finamente ralado e, ainda, pitadinhas de noz moscada.

Obtém-se a justa amálgama com a adição de mais ovos. No caso, a quantidade dos ovos depende do seu tamanho. Use sua sensibilidade.

O Cozimento Perfeito das Preciosidades

Depois de devidamente enrolados, como argolas com um chapeuzinho, os cappelletti, ou tortellini, precisam descansar, num ambiente bem sequinho, sobre farinha de trigo, por ao menos seis horas, cobertos por um pano.

Esse intervalo de tempo permitirá que a massa se contraia corretamente ao redor dos ingredientes do interior, e não se abra durante o processo de cozimento. A massa assim cometida, depois, resiste muito bem a uma semana de geladeira.

O cozimento exige dez volumes de água, levemente salgada, para uma parcela de massa – ou, um quilo da pasta em ao menos dez litros de líquido, detalhe fundamental, já em plena ebulição.

Os cappelletti, ou os tortellini, ou os ravioli, ficam prontinhos quando sobem à superfície e assumem uma cor mais clara do que a inicial. De todo modo, teste: mordê-los não custa nada...



Comentários

Atenção! Os comentários do site são via Facebook. Lembre-se de que o comentário é de inteira responsabilidade do autor e não expressa a opinião do jornal. Comentários que violem a lei, a moral e os bons costumes ou violem direitos de terceiros poderão ser denunciados pelos usuários e sua conta poderá ser banida.


;