O mito que Bonello revisita é o do profeta cego Tirésias, presente em tragédias sofoclianas como Édipo-Rei. Sua deficiência foi causada por ter flagrado a deusa Minerva em seu banho; castigado com a cegueira, é compensado com o dom de prever o futuro. Em outra corrente, Tirésias terminava por mudar de sexo ao fim da vida.
No filme de Bonello, Tiresia é um travesti brasileiro que sobrevive com os rendimentos angariados nas ruas parisienses. No exercício de suas funções, atrai a atenção de Terranova (Laurent Lucas), homem que é vidrado em toda manifestação artística enquanto reprodução da beleza. Terranova seqüestra Tiresia por acreditar que ela seja a materialização do belo ideal e representa outra menção dos mitos por Bonello – afinal, Minerva era a deusa da sabedoria e das artes.
Uma vez refém, Tiresia passa a carecer dos hormônios que ela consome para evitar o progresso de características físicas que denunciem sua condição natural de homem, como barba e voz grossa. É na transformação dramática que o diretor opera a mudança dos atores brasileiros: com a (in)ação dos hormônios, Clara sai de cena para a entrada de Teles. Incapaz de conter o atentado da natureza contra a beleza reconstruída (artificial) de Tiresia, Terranova a ataca e a deixa cega. Abandona-a, até que ela é acolhida por uma garota e passa a manifestar faculdades de clarividência. Bonello desglorifica o mito.
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