Cultura & Lazer Titulo
Comprando a briga
Cássio Gomes Neves
Do Diário do Grande ABC
06/10/2006 | 21:02
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Vez ou outra se fala em filme pessoal ao abordar determinado trabalho de um cineasta. Um conceito usado de forma genérica em boa parte das vezes e que, em poucas oportunidades, pode cair tão bem a um filme como cai a Do Luto à Luta, documentário de Evaldo Mocarzel que estréia esta semana em São Paulo. O diretor, documentarista que tem feito carreira no gênero desde À Margem da Imagem (2003), não revê processos nem a própria filmografia. Revê a vida, a paternidade.

E quem é Mocarzel? De quem ele é pai? De três filhos, uma delas Joana Mocarzel ou, para facilitar a vida dos noveleiros, a Clara de Páginas da Vida, filha de Regina Duarte na novela da Globo, escrita por Manoel Carlos. É ela a principal moldura da batalha social do dramaturgo, uma briga que envereda pelo discurso inclusivo dos portadores de síndrome de Down, sem assistencialismo. Noite sim, noite não, Regina Duarte aparece pingando os is na novela quando ouve outros personagens classificarem Clara de “coitadinha” e congêneres ou administrarem sua educação como se lidassem com uma cristaleira em meio a um estande de tiro ao alvo.

A namoradinha do Brasil é a mãe de Clara na ficção; Mocarzel é o pai de Joana na vida real. E seu discurso segue igual vereda, embora de forma muito mais bem-humorada, sem alisar cabeças.

O título do filme sintetiza a sensação de um pai, do instante em que recebe a notícia de que o filho recém-nascido é portador de síndrome de Down ao estalo de comprar a briga pela reversão de conceitos milenares e pela extinção de preconceitos. Pela inclusão efetiva, e não protocolar.

Para tal jornada pessoal, Mocarzel evita assistencialismos audiovisuais, registros denuncistas de dificuldades, asseverações de causa pela via da piedade e tal. Do Luto à Luta assemelha-se ao anterior À Margem da Imagem quando inclina-se a evocar a falha da sociabilização como uma conseqüência da imagem que perpetua observações antiquadas sobre os personagens de seu documentário. Imagem, constantemente, é a solidificação de um conceito, a projeção de um estereótipo, atalho para tornar hábito julgamentos precoces e/ou errôneos.

A apresentação que o novo documentário faz de downianos procura o lado mais cativante dos documentados. E que, por cativante, entenda-se humano, não amenizador. Há demonstrações de que, ao contrário do juízo comum, eles são capazes de aprender, sim. Que eles são capazes de casar e de observar comédias e tragédias da vida privada. Que eles são capazes de trabalhar, de praticar esportes, computados aí os da categoria radicais, como o surfe. Que eles são capazes de avaliar sua posição no cotidiano social e, mais sofisticadamente, entender até sua colocação como imagem no mundo, como signo de especificidade em um meio de representação – o cinema, no caso – quando um portador de Down, câmera na mão, indaga a Mocarzel as razões de seu interesse em retratá-lo. Os downianos deixam de sujeitar-se como modelos de imagem não só para terem reconstruídos os conceitos iniciais que o cercam; demonstram, também, a capacidade de produzir imagens, de produzir inquietações, de produzir questionamentos – fatores que no cinema deveriam ser interdependentes, sempre.

Evaldo fez um filme pessoal, sem dúvida. Não fez, entretanto, um filme só para si ou para Joana, musa e filha. Fez um filme para pais de portadores de Down e para a sociedade em geral. Não há, especialmente a partir do modo íntimo e sorridente com que filma, público específico para Do Luto à Luta.

DO LUTO À LUTA (Brasil, 2005). Dir.: Evaldo Mocarzel. Estréia no Unibanco Arteplex 4. Duração: 76 minutos. Classificação etária: livre.




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