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‘A fome não tem religião, pode atingir todos’, diz sheik
Ryan Leme
Especial para o Diário
15/04/2024 | 07:50
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FOTO: Celso Luiz/DGABC


O Ramadã, período de celebração a Deus para o povo islâmico em todo o mundo, terminou na última semana, e o sheik Jihad Hassan Hammadeh, nascido na Síria e morador de São Bernardo, porta-voz da comunidade islâmica no Brasil e vice-presidente da UNI (União Nacional das Entidades Islâmicas), fala sobre o significado da data, o cotidiano dos muçulmanos no Grande ABC, além do sentimento em relação aos conflitos atuais no Oriente Médio.Jihad Hammadeh também atua no combate à intolerância e à discriminação religiosa por meio das redes sociais.

Nome: Jihad Hassan Hammadeh
Estado civil: Casado
Idade: 58 anos
Local de nascimento: Damasco, Síria, e mora em São Bernardo
Formação: Teologia Islâmica, Ciências Sociais, História, mestrado em Comunicação Social, doutorando em Ciências Humanas
Time do coração: Sociedade Esportiva Palmeiras
Hobby: Artes marciais
Local predileto: Brasil
Livro que recomenda: A Biografia de Muhammad: o Mensageiro de Deus, de Sheikh Aminuddin Mohammad
Artista que marcou sua vida: Abu Rateb, cantor sírio da década de 1980
Profissão: Conselheiro religioso da ANAJI (Associação Nacional dos Juristas Islâmicos)

Mesmo nascido na Síria, o senhor veio cedo para o Brasil, e juntamente com a família, se estabeleceu no Grande ABC, mais especificamente em São Bernardo. Como foi o processo de adaptação?

Cheguei ao Brasil com meus pais, com 7 anos de idade. Meu pai veio para trabalhar como mascate, vendendo colchas e cobertores, então primeiramente veio sozinho. Logo depois o resto da família se juntou a ele. Nos estabelecemos em São Bernardo, que já tinha uma comunidade islâmica. Então, com o tempo, eu e meus irmãos começamos a estudar e a aprender o português e mais tarde comecei a ajudar meu pai no trabalho. Na década de 1980, minha família se mudou para a Capital, enquanto eu fui estudar Teologia Islâmica na Arábia Saudita, e, após 11 anos, voltei para o Grande ABC, em São Bernardo, onde me estabeleci, casei, continuei meus estudos e nunca mais saí. Hoje faço doutorado na USP (Universidade de São Paulo), posso dizer que sou um dos representantes da comunidade islâmica no Brasil, e o meu maior objetivo é lutar para acabar com o preconceito e discriminação religiosa, além de garantir o direito de liberdade religiosa para todas as pessoas.

E na sua opinião qual é a melhor forma de combater o preconceito e intolerância religiosa?

A islamofobia muitas vezes é provocada de forma premeditada por setores como uma parte da mídia, que acaba trazendo informações erradas de grandes agências internacionais sobre conflitos, como por exemplo no Oriente Médio, e isso acaba respingando na religião islâmica. Consequentemente, as pessoas, por falta de cultura ou desconhecimento, internalizam um preconceito. A intolerância religiosa precisa ser combatida da melhor forma possível: através do conhecimento. É por isso que as mesquitas estão abertas para visitações, também é por isso que eu busco, através dos meus perfis nas plataformas digitais, como o Instagram e TikTok, responder perguntas sobre a religião, para tirar as dúvidas das pessoas, para que possamos combater esta discriminação. Também contamos com a ANAJI (Associação Nacional de Juristas Islâmicos), uma entidade criada justamente para combater juridicamente os casos de islamofobia, e defender a comunidade, além de garantir a liberdade religiosa para todas as pessoas sem nenhuma discriminação.

São Bernardo tem a Vila Euclides, onde há uma concentração de famílias islâmicas. Mesmo sendo uma comunidade grande, como é possível fortalecer a prática religiosa em uma região fora do grande centro que é a Capital paulista?

A Mesquita Abu Baker Assadik, localizada em São Bernardo, é a única do Grande ABC. De fato, a comunidade islâmica é muito grande na região e é lá onde todos se congregam, se tornando, um ponto turístico da cidade, que está aberta à visitações para qualquer pessoa que quiser conhecer o local. Essa é uma forma de se abrir para a população não-islâmica, para que todos possam visitar e conhecer um pouco mais sobre a cultura desta religião. Certamente, o Grande ABC é importante, e a comunidade islâmica na região é referência para o Brasil todo, assim como a Mesquita Abu Baker Assadik, que já recebeu diversos congressos internacionais. Claro que não existe uma comparação com São Paulo, que possui uma comunidade islâmica gigantesca, e também conta com maior número de mesquitas, mas o Grande ABC não deixa de ser referência, e São Bernardo, tem, inclusive, a maior concentração de sheiks do Brasil.

Acabamos de passar pelo Ramadã, que durou até a última quarta-feira (10), e que é um período muito importante para o povo islâmico, mas talvez esbarre no desconhecimento de quem não faz parte da religião. O senhor pode explicar sobre a importância da data?

A palavra Ramadã significa ‘Época Quente’ ou ‘Calor Intenso’, e é o nome do nono mês do calendário islâmico, em que Deus determinou a todos os muçulmanos que jejuassem a partir da aurora até o pôr do sol. Então, não se deve ingerir nada sólido ou líquido, ou ter relações com o cônjuge neste período, do nascer ao pôr do sol. Já durante a parte da noite, essas coisas são permitidas moderadamente. Nós, muçulmanos, acreditamos que foi durante o mês do Ramadã que Deus revelou todas as escrituras sagradas: a Torá, o Velho Testamento, o Novo Testamento e o Alcorão. Por isso acreditamos que este mês é abençoado e é um mês de purificação e de elevação física, mental, emocional e espiritual. Durante este mês, buscamos melhorar e também sentir na pele o que o necessitado sente, além de adorar a Deus da melhor forma possível e entregar a ele algo sincero, porque o jejum é a adoração mais sincera que existe, pois é algo que ninguém vê, e que fica secreto entre você e seu Criador. E o jejum faz com que se cultive a humildade, também te faz sentir na pele a dor da fome, e além disso, é uma forma da pessoa superar os seus vícios, ter autocontrole e se superar, não ser escrava de seus desejos. Acredito que o Ramadã seja como um curso de reciclagem, de extrema importância para o desenvolvimento pessoal, quando todos os islâmicos devem jejuar a partir da puberdade se tiver condições de saúde para fazê-lo. O jejum é uma prática de todas as religiões, grupos e seitas, o jejum intermitente é praticado até mesmo na medicina. Os budistas têm jejum, assim como os cristãos, judeus e muçulmanos.

O Grande ABC constantemente recebe novas famílias islâmicas. Como o senhor acha que a região pode receber melhor as novas chegadas no futuro?

O acolhimento é algo que acontece diariamente. Os muçulmanos têm uma irmandade de fé, não importa a nacionalidade da pessoa, a irmandade é mais forte do que qualquer questão. O dever de todo muçulmano é acolher seus irmãos, sejam também muçulmanos ou não, pois a fome, por exemplo, não tem religião, ela pode atingir todos. Aqui temos refugiados que vieram da África, da Síria, da Palestina, e todos são acolhidos. A mesquita também é um local onde todos vêm participar juntos e vão se conhecer, criar laços de amizade e fraternidade. No passado, São Bernardo era caminho do porto de Santos para São Paulo, então muitas pessoas que chegavam de outros países ficavam por aqui, e, assim, a comunidade foi crescendo no Grande ABC. Hoje continuamos com a tradição: quando ficamos sabendo de novas famílias chegando, sempre buscamos acolher os novos necessitados.

Os conflitos no Oriente Médio atingem de alguma forma as comunidades islâmicas locais?

Na realidade, os acontecimentos em Gaza e na Palestina nos entristece muito, por causa desta irmandade que citei. O que afeta os palestinos e Gaza também afeta os muçulmanos em qualquer lugar do mundo, inclusive no Brasil. Nos doemos da mesma forma quando um cristão, ateu, ou judeu é injustiçado, pois não aceitamos isso para ninguém. Hoje, temos palestinos de todas as crenças que estão sendo massacrados, e somos solidários a eles, principalmente no mês do Ramadã, que deveria ser de exaltação e alegria, mas também estamos tristes de ver tanta matança, um genocídio acontecendo diante dos olhos do mundo. As pessoas são contra essa violência, mas existem governos que apoiam o que está acontecendo, que não é o caso do Brasil, que se posiciona veementemente contra. O jejum deste ano foi voltado, em orações, em doações e em solidariedade aos nossos irmãos palestinos que estão sofrendo neste momento.

Voltando para a sua trajetória, o senhor fez consultoria para algumas obras da televisão que tratavam sobre o povo muçulmano. Como foi a experiência?

Fui consultor da novela O Clone e Salve Jorge. Certamente as novelas têm uma licença poética, nem tudo retratado nas obras é a realidade, até porque não é este o objetivo da obra, mas elas com certeza ajudaram a divulgar a cultura islâmica e remover preconceitos presentes na sociedade. O Clone foi muito importante, ainda mais pela época em que foi lançada, logo após os ataques de 11 de setembro de 2001. Claro, aconteceram alguns equívocos, porém os principais temas abordados foram esclarecedores, e foi uma ferramenta para amenizar o preconceito e discriminação que muitos tinham com o povo muçulmano.

Além de combater o preconceito e a discriminação, qual seu objetivo em divulgar a cultura e a fé islâmica nas suas redes sociais?

Criar pontes, trazer a cultura islâmica para os brasileiros que não a conhecem e também levar a cultura latina e brasileira para os países árabes. O mais importante é criar pontes entre esses dois mundos, por ter uma distância muito grande, acredito que sempre existe algo para descobrir.




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