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Resgatando a cidadania

Serviço de saúde de Santo André ajudou ex-moradora de rua a abandonar o vício e mudar de vida

Thainá Lana
05/02/2024 | 07:00
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Claudinei Plaza/DGABC


Dormir em uma cama quentinha, fazer todas as refeições do dia, voltar para casa depois de um dia cansativo de trabalho e desfrutar de momentos de lazer ao lado de amigos. O que para muita gente pode parecer algo corriqueiro e sem muita importância, para Josefa Bernardo da Silva, 48 anos, essas opções não eram uma possibilidade. A realidade que conhecia estava muito distante desse cenário, a incerteza, o vício e a solidão a acompanhavam diariamente. 

Josefa chegou em Santo André aos 11 anos. Saiu sozinha do município de Serra Branca, na Paraíba, para trabalhar de babá na casa de uma prima. O sonho de conquistar uma vida melhor em São Paulo foi interrompido rapidamente por conta de problemas familiares, e em pouco tempo de convivência, descobriu que a rua seria o seu novo lar. 

Sem dinheiro, sem saber ler e escrever, e sem apoio, encontrou nas drogas e na criminalidade o caminho para sua sobrevivência nas ruas do município andreense. Começou a usar cocaína aos 15 anos, e em curto período se tornou uma usuária de crack e de bebidas alcoólicas. Encontrou nas substâncias o caminho para ignorar a fome, o frio e o medo. 

Para sustentar o vício, além das esmolas que recebia, passou a praticar diversos crimes, como roubo, furto e tráfico de drogas, delito que a levou pela primeira vez ao sistema prisional, com 18 anos. Após cumprir pena de três anos, voltou para casa que conhecia, a rua, e lá continuou vivendo a única vida que sabia viver. Santo André não era o seu único lar, morou em São José dos Campos, Capital, e em outros municípios. “Mas sempre voltei para cá, não sei por que, sempre gostei dessa cidade e por isso sempre retornava”, diz Josefa.

Em meio ao universo das drogas e do crime, engravidou da sua primeira filha. A maternidade não foi capaz de transformar a realidade de Josefa, que deixou que as substâncias químicas continuassem traçando o seu destino. Foi embora sem olhar para trás, e nunca mais viu a sua primogênita. 

A rua havia reservado uma surpresa para ela, pela primeira vez iria sentir, mesmo que por pouco tempo, a companhia e o afeto familiar. O destino colocou em seu caminho um vendedor ambulante, que seria o futuro pai dos seus quatro filhos. Juntos, eles se mudaram para Indaiatuba, no Interior, em busca de uma vida melhor. Enquanto criavam as crianças, o homem fazia uso de substâncias ilícitas, e alimentava em Josefa, que tinha 25 anos na época, o desejo de voltar para o antigo vício. 

Para sustentar a casa, os quatro filhos, e a dependência, Josefa continuava vendendo drogas no bairro Utinga, quando foi presa pela segunda vez por roubo. Além de perder a liberdade, ao entrar no sistema prisional o abandono a encontrava novamente, desta vez pela nova família que havia criado. 

“Meu marido também usava drogas, mas quando fui presa levei toda a culpa da maneira que vivíamos, ele pegou as crianças e sumiu no mundo. Dessa vez era diferente, praticava os crimes também para sustentar minha família, e mais uma vez fiquei sozinha. Foi nesse momento que desisti de viver, apenas sobrevivia”, desabafa Josefa, que não consegue precisar as datas dos acontecimentos da sua vida por conta da perda de memória, uma das sequelas que carrega devido ao uso excessivo de drogas. 

Mais uma vez, as substâncias químicas foram a sua válvula de escape. “Usava para não sentir dor, para ficar alegre, para não sentir falta dos filhos, para não me sentir abandonada, para não sentir nada. O ciclo era o mesmo, só que ainda pior, ficava cinco dias sem dormir, sem beber água e comer”. O fim de Josefa era claro para ela, iria morrer da mesma maneira que tudo começou. 

TENTATIVAS 

Josefa costumava ficar em uma fábrica abandonada na Avenida Industrial ou no bairro Utinga. Em 2014, equipes do Consultório na Rua de Santo André cruzaram seu caminho pela primeira vez, e ali iniciaram uma relação que duraria mais de uma década. 

O serviço, que atende a população em situação de rua no município, a acompanhou por dez anos. As equipes atuavam para promover a saúde integral de Josefa, de outros moradores, com aplicação de vacinas, oferta de métodos contraceptivos, remédios, curativos e produtos de higiene, apoio psicológico e social, encaminhamento para unidades de saúde em casos mais graves, entre outras medidas. 

“Eles me ofereciam emprego, me levavam para o CAPS (Centro de Atenção Psicossocial), cuidavam de mim de todas as formas. Na época, não queria nada disso, só queria continuar vivendo no meu mundo”, conta. 

Entre as diversas tentativas de recuperação durante os anos, a mudança começou a partir de um machucado no pé. Em 2020, no início da pandemia da Covid-19, Josefa precisou ser hospitalizada para tratar do ferimento, e com isso as equipes intensificaram o trabalho psicossocial com ela. 

Após alta médica, os planos e desejos traçados enquanto estava sóbria foram dispensados, e Josefa decidiu escolher o velho e conhecido caminho da rua. O machucado não estava totalmente cicatrizado, por isso os profissionais do Consultório na Rua continuaram cuidando da paciente, refazendo os curativos que eram arrancados no momento das alucinações, e controlando os remédios para dor, que eram ingeridos com álcool. 

O resultado foi o esperado, com a piora do ferimento, foi internada novamente. “Eles me perguntaram se eu queria viver ou morrer. Aquilo mexeu comigo”. Mais consciente, dessa vez decidiu iniciar o tratamento e após o processo de desintoxicação no CAPS, foi morar em uma república do município, espaço destinado a pessoas em situação de rua que perderam o vínculo familiar.

“A Josefa mantinha uma lembrança muito saudosista da rua. Chegou um momento que não conseguimos manter ela na república, e ela foi embora em uma quinta-feira. O tratamento só dá certo quando o paciente também quer. Na segunda-feira fomos atrás dela, e ainda bem que a encontramos, ela havia bebido álcool combustível, e estava muito mal. Nesses três anos de tratamento, foi a única recaída que teve, depois disso nunca mais”, explica Cicero Mendes Ferreira, 49, acompanhante terapêutico da república, e fiel escudeiro da paciente. 

MUDANÇA DE VIDA

“Pela primeira vez estou vivendo, nasci de novo”. O ano passado ficará marcado para sempre na memória e no coração de Josefa. Após se empenhar na sua recuperação, os primeiros resultados começaram a aparecer, e em 2023 ingressou no seu primeiro emprego com carteira assinada, na Gerência de Controle de Zoonoses, em Santo André. Além disso, também alugou uma casa no centro do município - próximo à república- e começou a estudar. 

“Nunca é tarde para começar, estou amando essa nova vida, se soubesse que era tão boa assim teria aceitado ajuda antes. Agora ganho meu dinheiro, compro minhas coisas, sou apaixonada pelo meu trabalho e não vejo a hora de voltar às aulas para encontrar meus amigos”. Os planos não acabam por aí, Josefa pretende fazer inglês e informática neste ano e vai estudar para um concurso público para trabalhar como merendeira. 

O caminho para recuperar todos os anos perdidos na rua é longo, e Josefa sabe disso, mas as conquistas são a sua maior motivação para continuar vivendo a vida com independência. “Pretendo estudar mais, ganhar mais, e depois vou procurar meus filhos e minha família. Sinto falta deles, mas preciso estar mais forte para encarar esse reencontro. No fundo, eu realmente queria viver, ainda bem que eles (profissionais do Consultório na Rua) não desistiram de mim”, finaliza Josefa.

Consultório na Rua realiza mensalmente 639 atendimentos no Grande ABC

Por mês, 639 pessoas são atendidas pelo Consultório na Rua, nos municípios de Santo André, Diadema e Mauá – Ribeirão Pires e Rio Grande da Serra não contam com essa modalidade. São Bernardo e São Caetano não informaram os dados.

O serviço de saúde busca garantir o cuidado integral da população em situação de rua, com equipes multidisciplinares, com médicos, enfermeiros, psicólogos, agentes redutores de danos, assistentes sociais, entre outros profissionais.

No ano passado, o número de atendimentos cresceu 3% em um ano. Em 2023, foram realizadas 7.672 assistências, e em 2022 foram 7.396. Somente no primeiro mês de 2024, as três cidades contabilizaram 459 atendimentos.

As principais ofertas de ações e serviços de saúde focados em promoção e prevenção à saúde pelas equipes do Consultório na Rua são entrega de kits de higiene, de livros e de preservativos, oferta de água, aferição de sinais vitais, realização de curativos, prescrição e entrega de medicações, agendamento, coleta de exames, entre outros procedimentos.




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