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Grande ABC registra 1.452 internações por dependência química

De janeiro a abril deste ano, 259 pessoas foram hospitalizadas; municípios contam 176 leitos

Renan Soares
Thainá Lana
Do Diário do Grande ABC
23/07/2023 | 02:39
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Claudinei Plaza/DGABC


De 2021 a abril deste ano, 1.452 pessoas ficaram internadas nos hospitais da região para tratamento de dependência química. Somente nos primeiros quatro meses de 2023, foram registradas 259 hospitalizações, cerca de duas por dia. Os dados fazem parte de levantamento realizado pela Secretaria Estadual da Saúde, a pedido do Diário, para a terceira reportagem da série 'Vício Regional', publicada aos domingos durante o mês de julho. (Clique aqui para ler outras matérias)

O Grande ABC conta com duas unidades de referência, que também possuem atendimento psiquiátrico, sendo elas o Hospital Mário Covas, que dispõe de 21 leitos especializados em psiquiatria, e o Hospital Estadual de Diadema, que possui 10 leitos. Para atender esses pacientes, o Estado também mantém um convênio com o Hospital Lacan, em São Bernardo, que conta com 145 leitos. Juntos, os três equipamentos ofertam 176 vagas de internação. 

Em 2022, durante todo ano, foram registradas 587 internações na região, número 3,13% menor que em 2021, que contabilizou 606 hospitalizações. Marcelo Maciel Andrucioli, 45 anos, é um desses pacientes. Internado em outubro do ano passado após surto psicótico relacionado ao uso excessivo de maconha, ele passou dois meses no Hospital Lacan antes de ser encaminhado ao CAPS AD (Centro de Atenção Psicossocial Álcool e outras Drogas) Bárbara da Silva Santos, em Santo André. (leia mais abaixo)

Segundo a mãe de Marcelo, Vânia Narimar Maciel, 66, o filho ainda não se recuperou completamente, mas demonstra significativa melhora. Ela relembra os momentos de tensão que antecederam a internação. “Quando meu filho teve o surto ficou completamente transtornado, virou outra pessoa”, afirma Vânia, que continua. “Achava que ele precisava de ajuda, porque ele não dormia e ficava cada vez mais nervoso e agressivo comigo, e antes a gente se dava muito bem”, finaliza a mãe.

Sem consumir a droga desde a internação, em 2022, Marcelo revela. “Se não fosse minha mãe, acredito que ainda estaria em estado de surto”. 

No Estado, as hospitalizações por dependência química chegaram a 6.942 neste ano, de janeiro a abril. Para casos mais graves, como intoxicação por álcool ou drogas, os pacientes devem procurar atendimento em serviços de saúde de urgência e emergência. 

CONSEQUÊNCIAS

Os efeitos das substâncias psicoativas no organismo dos dependentes são diversos, conforme explica Talita Di Santi, psiquiatra formada pelo Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas de São Paulo. Segundo Di Santi os efeitos iniciais estão mais ligados a alterações de humor e comportamento, como Marcelo, afetando todo o corpo do usuário com o decorrer do tempo.

“A dependência química é uma das consequências a longo prazo, já que os usuários cada vez mais precisam da droga para ter a sensação de prazer”, explica a psiquiatra, que também é supervisora do Promud (Programa da Mulher Dependente Química) do Instituto de Psiquiatria. Segundo a especialista, a dependência em substâncias psicoativas é variável, sendo individual e multifatorial para cada usuário.

Di Santi ainda cita diversas outras consequências para o uso abusivo de drogas, como: doenças cardiovasculares; aumento da frequência cardíaca e da pressão arterial; problemas hepáticos, que pode levar a hepatites; alterações respiratórias, com problemas pulmonares crônicos; transtornos psiquiátricos, principalmente depressão e ansiedade; e overdose.

“A overdose se caracteriza por uma concentração excessiva de substância psicoativa no organismo, sendo maior do que o corpo suporta, e, nesse sentido, há um comprometimento das funções vitais”, explica a especialista.

Para melhor tratamento do vício, Di Santi defende um processo individualizado, com uma abordagem multidisciplinar e multifatorial, com apoio em diversas frentes, como saúde e assistência social. A internação, segundo a especialista, é uma alternativa recomendada para casos graves ou quando há falha do tratamento ambulatorial.

ATENDIMENTO

Na região, encontram-se disponíveis serviços e ações de cuidado que visam a redução dos impactos do uso de drogas na saúde, na vida, no trabalho e nas relações sociais do indivíduo. Em Santo André, o principal é o CAPS AD Bárbara da Silva Santos, localizado na Rua Venezuela, 91 - Centro.

Na região, há outras unidades de CAPS AD que atuam de segunda a sexta-feira em São Bernardo (Estrada da Cooperativa, 209 - Alves Dias), das 7h às 19h; São Caetano (Rua dos Castores, 60 - Bairro Mauá), 7h às 17h; Diadema (Rua Moacyr Goulart Cunha Caldas, 111 – Centro), 8h às 11h30 e das 13h30 às 16h30; e  Mauá (Avenida Dom José Gaspar, 62 - Bairro Matriz) 8h às 12h e das 14h às 18h.

Em Ribeirão Pires, o atendimento via CAPS acontece na Rua Domingos Benvenuto, 12, no Centro, das 8h às 17h durante a semana, já em Rio Grande da Serra o serviço é feito na Rua Pref. Carlos José Carlson, 9 - Jardim Maria Paula, no mesmo horário.

As cidades ressaltam que a atenção básica é a porta de entrada dos serviços de saúde, por meio das UBSs (Unidades Básicas de Saúde) que atendem casos de uso de substâncias psicoativas.

ÁLCOOL

Conforme cita a psiquiatra, no tratamento, o álcool é considerado como droga, pois é “tão potente em causar dependência química quanto outras substâncias”. Segundo Di Santi, o álcool  afeta o sistema nervoso central, e pode deixar quem consome mais lento, sonolento, com dificuldade para exercer tarefas simples. Além disso, a longo prazo, a bebida pode causar problemas no pâncreas e estômago, assim como auxiliar no desenvolvimento de transtornos mentais.

“O que chamamos substâncias psicoativas agem no sistema nervoso central. O álcool tende a diminuir a excitação do sistema nervoso central", afirma. “Precisamos pensar e estabelecer políticas públicas frente a essa substância que é histórica e culturalmente lícita e apoiada na sociedade”, defende a especialista.

VACINA

Desenvolvida pela Faculdade de Medicina da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), a vacina terapêutica para o tratamento da dependência em cocaína e crack, já concluiu as etapas pré-clínicas, em que foi constatada segurança e eficácia para o processo e para prevenção de consequências obstétricas e fetais da exposição à droga durante a gravidez em animais. Agora com R$ 10 milhões de investimento da Fapemig (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais), os testes devem avançar para a fase em humanos.

O projeto, que concorre ao Prêmio Euro Inovação na Saúde, induz o sistema imune a produzir anticorpos que se ligam à cocaína na corrente sanguínea. Essa ligação transforma a droga numa molécula grande, que não passa pela barreira hematoencefálica. A proposta visa enfrentar a dependência em cocaína e seus derivados, como o caso do crack, mistura da substância com bicarbonato de sódio ou amônia. 

Tratamento oferece recomeço a usuários

Josefa Bernardo da Silva, 49 anos, Marcelo Maciel Andrucioli, 45, e Natan Vanini, 52, carregam em suas histórias dois pontos em comum. O primeiro, o vício em substâncias psicoativas, fator que gerou episódios traumáticos na vida de cada um. O segundo, e mais importante, é a batalha para vencer a dependência química. Na busca por esse recomeço, o grupo realiza tratamento no  CAPS AD (Centro de Atenção Psicossocial Álcool e outras Drogas) Bárbara da Silva Santos, em Santo André. 

“Existe uma vida sem o uso da bebida e da droga”, afirma Natan Vanini. Há um ano e três meses frequentando o espaço, ele relembra quando entrou no mundo das drogas. Vivendo em uma família conservadora, Vanini aproveitou o dia em que os pais o deixaram sair com amigos pela primeira vez, aos 22 anos, e, “para descontrair”, iniciou o uso do álcool, que se expandiu depois para cocaína e crack. O ponto final e a busca pelo CAPS, aos 51, ocorreu após um surto psicótico, enquanto misturava cocaína com bebida.

“Quando se é jovem, você chapa, deita, dorme, e acorda bem. Mas por diversas vezes mudei de emprego, porque chegava atrasado, faltava ou inventava alguma doença. Aquela turma que usava drogas para recreação parou de usar, só que eu não” afirma Vanini. “Fui deteriorando. Ficava quatro dias dentro de um barraco usando drogas, completamente enlouquecido. Quando acabava o dinheiro eu vendia tênis, liquidificador, televisão, o que tinha, pela obsessão da droga”, desabafa.

Questionado sobre a possibilidade de vencer a dependência, ele diz: “É possível, não acreditava e consegui”. Marcelo Maciel Andrucioli concorda com a afirmação. Desde outubro de 2022 no CAPS, após um surto psicótico por uso excessivo de maconha, o paciente, que chegava a fumar oito baseados por dia, demonstra evolução no tratamento e sonha em voltar à sua vida que levava antes da crise sanitária da Covid-19.

“Comecei a fumar na pandemia porque andava meio perturbado. Usava para me acalmar, porque começou a fechar tudo e eu era comerciante. No começo, a maconha me acalmava, porém, não percebi que, na verdade, era ela que estava me acelerando” explica Marcelo, que conta com a ajuda da mãe, Vânia Narimar Maciel, 66, para voltar retomar o controle da sua vida. 

Já Josefa Bernardo da Silva tem como principal laço familiar as pessoas que a acolheram. Nascida na Paraíba, veio aos 15 anos para a Capital, e viveu por 20 anos nas ruas, sendo uma década em Santo André. Para se sustentar, ela revela que vendia drogas e roubava. Presa por duas vezes, perdeu o contato com os filhos, mas mantém a esperança de reencontrá-los, dessa vez recuperada.

“Eu bebia muito e ainda usava crack, cocaína e maconha. Então, o Consultório na Rua foi lá onde morava”, afirma Josefa. “Eu só tenho a agradecer. Se não fosse o CAPS acho que já teria morrido. Foi sofrido parar, deu crise de choro e nervoso, mas com o tempo passou a dar nojo e enjoo”, finaliza a paciente, que agora sonha estudar para conquistar um emprego como merendeira e ter sua primeira casa própria.

SERVIÇO

O equipamento, que faz parte da RAPS (Rede de Atenção Psicossocial) do município, é o principal espaço de cuidado ao público que faz uso de substâncias psicoativas. A unidade de saúde oferece atendimento de porta aberta, ou seja, sem a necessidade de encaminhamento de outro serviço, de segunda a sexta-feira, das 7h às 19h. Para os usuários que permanecem em hospitalidade integral (regime de internação voluntária), o atendimento é ininterrupto. 

"Eles chegam na ONG achando que a morte é o único caminho"

No Grande ABC, diversas instituições sociais realizam trabalhos voltados à população em vulnerabilidade, como pessoas em situação de rua, dependentes químicos, entre outros grupos.

Em São Caetano, a ONG (Organização Não Governamental) Mãos que Abençoam atende há 10 anos os ‘invisíveis sociais’, aqueles que, por algum motivo, perderam vínculos familiares e encontraram nas ruas ou nas drogas um caminho para sobreviver.

No espaço, localizado na Alameda São Caetano, no Bairro Santa Paula, são oferecidos, de segunda, quarta e sexta-feira, serviços para atender as necessidades básicas das pessoas, como banho, troca de roupa, café da manhã e almoço. Em média, 150 pessoas são atendidas por semana.

Além do serviço essencial promovido nesses dias, a ONG também realiza orientação para regularização de documentação, apoio profissional com psicóloga e assistente social.

Dependentes químicos são assistidos pela comunidade terapêutica da instituição e recebem vagas em clínicas de recuperação, conforme explica a vice-presidente da entidade, Paula Maria Ribeiro do Amaral.

Para quem deseja mudar de vida, é possível realizar um tratamento, de forma gratuita, por até nove meses. “Por conta da parceria com as empresas é cobrada apenas uma mensalidade social, de R$ 300 mais cesta básica. Arcamos com todo o custo, e fazemos o papel da família deles, de acompanhamento durante o período de recuperação”, esclarece Maria.

“Eles chegam na ONG achando que a morte é o único caminho, e encontram uma oportunidade para recomeçar, escrever um novo projeto para vida”, finaliza a vice-presidente.

Para realizar o trabalho social, a ONG Mãos que Abençoam (@ongmãosqueabençoam) sobrevive de doações de dinheiro, itens de higiene básica, material de limpeza, além de roupas e alimentos.




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