Vício Regional Titulo Vício Regional
As ‘mini’ cracolândias do Grande ABC

Em diferentes municípios da região, locais concentram usuários de drogas, acúmulo de lixo, e trazem sensação de insegurança a moradores e comerciantes no entorno dos endereços

Renan Soares
Thainá Lana
Do Diário do Grande ABC
09/07/2023 | 00:01
Compartilhar notícia
Celso Luiz/DGABC


“To doido para dar uma paulada”, disse um dependente químico enquanto tirava um pino de crack da meia e se preparava para acender o cachimbo com a droga, um dos diversos que já havia fumado naquele dia. A cena aconteceu em plena quinta-feira, durante à tarde, na beira da linha férrea da estação Utinga, localizada entre Santo André e São Caetano. “Entrei nessa vida por curiosidade, era moleque. Hoje tenho 41 anos, 28 só no crack. Tenho vontade de voltar para casa”, desabafou Cézar - nome fictício usado por questão de segurança, assim como de outros personagens citados nesta reportagem. 

O ponto, que concentra diversos usuários de drogas na estação de trem da linha 10-Turquesa da CPTM (Companhia Paulista de Trens Metropolitanos), é apenas um dos diversos locais distribuídos pelos municípios do Grande ABC. Essas áreas foram mapeadas pelo Diário para a primeira reportagem da série ‘Vício Regional’, que, a partir de hoje e pelos próximos três domingos, irá trazer um raio-x das drogas na região.

(Estação Utinga)

Na região, não há local com as mesmas dimensões da cracolândia, um dos maiores territórios de consumo de drogas do País, localizado na Capital. Porém, é possível encontrar, em menor escala, diversos espaços ocupados por dependentes químicos e pessoas vivendo em situação de rua. Nessas áreas, além do consumo de entorpecentes em espaços públicos, há acúmulo de resíduos nas vias, e falta de segurança, segundo denunciaram moradores e comerciantes que vivem no entorno dos endereços. (leia mais abaixo)

Além da estação de trem, Santo André registra outros endereços com agrupamento de usuários de drogas, como as Avenidas Dom Jorge Marcos de Oliveira e Prestes Maia, e um terreno abandonado com entrada na Rua Carijós, na altura do número 3.870, na Vila Linda. Em janeiro deste ano, três pessoas foram assassinadas no local. 

Em São Bernardo, os endereços mapeados estão em áreas comerciais e residenciais. Na Praça  Brasitália, a 420 metros do Paço, pinos de cocaína e crack podem ser encontrados com facilidade pelo chão. Segundo afirmaram comerciantes do Conjunto Anchieta, usuários se aglomeram na praça durante todo o dia, com maior volume no período noturno. 

(Praça  Brasitália)

Em outro ponto do município, na Vila São Pedro, os dependentes improvisaram um local quase ‘escondido’ para poderem usar drogas. Instalado atrás de um muro, entre uma horta comunitária que cruza toda a Rua do Oleoduto, e próximo a Emeb (Escola Municipal de Educação Básica) Irmã Odete, cerca de oito pessoas vivem e consomem drogas há pelo menos dois anos no espaço.

Já na divisa entre São Bernardo e Diadema, no entorno do piscinão do Taboão, a ocupação de tendas, o acúmulo de lixo, e o constante trânsito de pessoas durante todo o dia, denunciam a finalidade do local: consumo aberto dos mais variados tipos de entorpecentes.

(Piscinão do Taboão)

O ex-delegado e professor doutor de direito penal e criminologia da PUC/SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo), Édson Luís Baldan, explica que a escolha e a permanência de dependentes químicos em determinados locais ocorre porque as pessoas, dessocializadas da realidade, formam uma subcultura e agrupam-se em torno de um problema comum, no caso, a dependência.

“Normalmente, o primeiro ponto de concentração é escolhido por se tratar de área degradada da cidade que evoca a ausência de vigilância estatal e a não predominância de ocupação residencial. Natural que a opção por uma área central obedece a algumas contingências: facilidade de locomoção e incorporação de novos dependentes, trânsito de pessoas e veículos que podem se tornar alvos de crimes de pequena aquisição patrimonial, como roubo a pedestres, furto do interior de automóveis, além de proximidade aos fornecedores das drogas”.  

O docente complementa. “A permanência dos usuários, aglomerados ou não, é que propicia a existência do tráfico, tanto como realidade social quanto como definição legal em nosso contexto proibicionista”, finaliza.  

REALIDADE DISTORCIDA

Para quem vive nesses espaços, a realidade pode ser distorcida. Por conta do efeito do crack (droga mais consumida por esses grupos), são dias sem comer, dormir e tomar banho. Muitos perdem o contato com as famílias e devido ao vício decidem viver nas ruas. “Tem vezes que fico dias fumando direto, mas não dá para viver só de drogas, também preciso me alimentar e correr atrás né! Saco vazio não para em pé. Sou um ser humano também, tenho família, filha. Já acabou a entrevista? Posso ir embora? Quero dar um trago”, falou Anderson impaciente, pois segundo ele, o efeito da droga dura apenas alguns minutos, e a necessidade por mais é quase que imediata.  

Vanderlei, amigo de Cézar e de Anderson, contou que gasta diariamente, em média, R$ 90 com crack, sendo R$ 700 o valor mais alto que já gastou em um único dia. Para sustentar o vício, o grupo explica que nos dias de ‘sobriedade’ recolhem materiais recicláveis pela cidade, e compram entorpecentes para outros usuários que não têm coragem de buscar as drogas diretamente nas ‘bocas de fumo’ (locais que comercializam as drogas ilícitas). “Muitas pessoas quando saem do trabalho passam aqui, seja a pé, de trem ou de carro, e pedem para buscar cocaína e crack. E aí dão um trocado para gente pelo transporte”, explicou Vanderlei. 

Questionados, os três homens afirmaram que já tentaram parar com as drogas em algum momento da vida, mas a dependência pela substância química foi mais forte. “Meu conselho para quem está começando é: sai fora dessa vida enquanto ainda dá tempo”, finalizou Cézar.  

O QUE DIZEM AS PREFEITURAS

Sobre os pontos de uso de drogas em Santo André, a Prefeitura do município afirmou que possui mapeamento das áreas citadas e que realiza trabalho conjunto com diversas secretarias. No campo da saúde, a abordagem ocorre pelo serviço Consultório na Rua, com busca ativa aos usuários de álcool, crack e outras drogas. A administração menciona que as ações consistem em um trabalho planejado de aproximação, realizando o atendimento às pessoas sempre que há aceitação. O Paço também pontuou que é periodicamente efetuado serviços de limpeza nos locais informados.

Diadema reforçou que tem ciência da situação, e que a administração mantém um grupo de pessoas para discutir a concentração de usuários no piscinão do Taboão. Semanalmente são feitas abordagens no local. "Com relação à coleta de resíduos, são feitas ações periódicas (quinzenalmente) no local. Ressalta-se que 95% do território encontra-se no município de São Bernardo", esclareceu a Prefeitura. 

Em resposta, a CPTM justificou que o ponto de drogas em Utinga não é de responsabilidade da companhia, e sim da MRS Logística. A empresa citada não respondeu os questionamentos do Diário sobre a utilização do espaço, assim como a Prefeitura de São Bernardo.

Comerciantes reclamam de falta de segurança nos locais

A presença de dependentes químicos em locais próximos a comércios e residências na região tem levado medo e incômodo a quem frequenta os espaços. Morador há 12 anos da Vila São Pedro, em São Bernardo, e que preferiu não se identificar, que existe entre os vizinhos uma sensação de insegurança por conta dos usuários de drogas que ocupam um espaço entre a Emeb (Escola Municipal de Educação Básica) Irmã Odete e uma horta comunitária na Rua do Oleoduto. 

Já Silas Diniz Lopes, 29, comerciante há doze anos no Conjunto Anchieta, no município são-bernardense, afirma que, apesar dos usuários nunca terem furtado ou roubado itens de sua loja de eletroeletrônicos, nos últimos anos os clientes têm evitado a ida ao local. Em ligação, os consumidores pedem para que os produtos sejam separados e entregues diretamente no carro, pois, preferem não descer do veículo. 

Segundo o vendedor, a concentração se intensifica a partir das 18h, principalmente na Praça  Brasitália, em frente ao Conjunto Anchieta, chegando rapidamente a um pico de 50 pessoas no espaço. Em breve descrição, o comerciante diz que o público é composto majoritariamente por jovens entre 18 e 30 anos. Silas afirma que a cada dia novos rostos aparecem, aumentando a rotatividade do público.

Em Santo André, um dos espaços com maior concentração de dependentes químicos fica localizado na Rua Carijós, no número 3.870. Proprietário de uma loja de materiais de construção há poucos metros, André Gomes, 36, relata situação parecida a de outros comerciantes. Vendedor há 30 anos no bairro, ele diz que os dependentes respeitam sua loja apenas quando está presente.

“Durante o dia que estamos aqui eles não mexem, porém, os furtos de pequenas coisas ocorrem à noite, quando entram pelo telhado e tentam pegar algum produto”, diz André. 

Ele admite se incomodar com os usuários que param em frente ao seu estabelecimento, pedindo dinheiro para os clientes que saem do local. Segundo o comerciante, já houve inúmeras tentativas de retirada dos dependentes químicos pela GCM (Guarda Civil Municipal) e pela PM (Polícia Militar), mas “eles sempre voltam”. “É uma situação complicada, porque é também uma questão de saúde pública, e não apenas de segurança”, destacou o vendedor.

Sobre as ações de segurança nos endereços, a Prefeitura de Santo André informou que possui um mapeamento dos pontos de drogas, e que a GCM realiza cerca de três operações por semana, além de patrulhamento de rotina. Já Diadema diz que as forças de segurança municipais fazem patrulhamentos rotineiros no piscinão do Taboão. São Bernardo não respondeu à demanda.




Comentários

Atenção! Os comentários do site são via Facebook. Lembre-se de que o comentário é de inteira responsabilidade do autor e não expressa a opinião do jornal. Comentários que violem a lei, a moral e os bons costumes ou violem direitos de terceiros poderão ser denunciados pelos usuários e sua conta poderá ser banida.


;