A escritora Camille Paglia é talvez uma das mais festejadas e polêmicas intelectuais deste fim de século, graças às suas reveladoras análises dos labirintos do desejo e dos ardis femininos na guerra por espaço e poder em um mundo dominado por machos. E é com esse olhar, conhecedor e crítico das artimanhas dessas predadoras, que a professora penetra no universo de Alfred Hitchcock e analisa Os Pássaros - clássico de 1963 que, segundo a autópsia pagliana, traça uma relaçao muito próxima entre o comportamento das aves do título e o da galeria de mulheres criada pelo diretor.

Os Pássaros (Rocco, 130 págs., R$ 21,50), é leitura interessantíssima, tanto para fas ansiosos por detalhes do complicado processo de criaçao de Hitchcock quanto para cinéfilos que buscam uma nova visao das loiras geladas e maes edipianas tao presentes no universo hitchcockiano. Esta perspectiva leva em conta questoes de ordem psicológica, social e faz uso da semiótica para encontrar mensagens subliminares e ligaçoes de correspondência entre cenários, diálogos e tipos de diversos filmes do cineasta.

Além disso, o livro de Camille tem um mérito inegável e absoluto: ajuda a compensar a injustiça cometida por legioes inteiras de críticos contra a ótima Tippi Hedren. A atriz, que interpreta a protagonista Melanie Daniels, foi ridicularizada durante anos por sua atuaçao, mas a escritora recompensa o talento da loira (mae de Melanie Griffith) cedendo-lhe o título de grande heroína hitchcockiana.

Curiosidades - Muitos cinéfilos seriam capazes de jurar que Melanie Daniels é a mulher rodeada de pássaros, com rosto aterrorizado, no célebre pôster oficial do filme. Mas, apesar do cabelo loiro e das roupas do mesmo verde do famoso tailleur imortalizado por Tippi, a foto usada é de Jessica Tandy.

Camille conclui que a confusao foi proposital, e que faz referência ao fim do filme, quando Melanie, a garota fútil e ardilosa se rende à proteçao maternal de Lydia (Jessica), a mae castradora e ciumenta de Mitch - objeto de desejo da protagonista. A escritora ainda relaciona o fato com o clímax de Psicose, quando mae e filho se revelam um só.

O livro também leva o leitor para trás das câmeras, mostrando desde a origem da idéia de Os Pássaros até os bastidores das cenas mais difíceis, com Tippi e outros membros da equipe contracenando com aves mecânicas ou sendo picados e infestados por piolhos nas sequências rodadas com pássaros de verdade.

Os Pássaros se baseia no livro de Daphne Du Maurier e em fatos reais ocorridos nos Estados Unidos. Um deles reproduzido por Hitchcock na cena em que aves entram pela chaminé da casa de Lydia e Mitch, aterrorizando os moradores que descansavam na sala. Há ainda relatos interessantes sobre a fobia do diretor em relaçao a esses animais e uma outra relaçao com Psicose: Marion Crane (crane significa garça), vem de Phoenix (fênix) e é morta por Bates, que coleciona aves empalhadas.

Repressao - A escritora mergulha ainda no mundo pessoal de Hitchcock, ele mesmo vítima de uma mae edipiana que o acompanha e atormenta em muitos de seus filmes, e homem assustado com o encantador e perigoso poder feminino. "Os Pássaros registra um retorno dos reprimidos, uma liberaçao de forças primitivas de sexo e apetite que foram subjugadas, porém jamais totalmente domadas", define Camille em certa passagem do livro, referindo-se também ao próprio diretor, ele mesmo um homem "domado" por mulheres.

Mais detalhes sobre a personalidade um tanto perturbada e perturbadora de Hitchcock surgem em outros momentos da obra, que equilibra bem boas doses de informaçao, citaçoes de respeitadas fontes de referência sobre o assunto, fotos do filme e opinioes de Camille, que, aliás se revela uma grande fa do diretor e, a despeito de suas posiçoes feministas, se rende aos encantos da frívola, mimada e dependente Melanie Daniels.