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Orquestra se reinventa para ser independente

Ideia de inovar surgiu da necessidade de não depender do poder público e de ir além da música clássica

Bia Moço
Do Diário do Grande ABC
21/12/2020 | 00:02
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Denis Maciel/DGABC


Innovare (do italiano, inovar). Foi essa pequena palavra que mudou a vida de cerca de 75 músicos da antiga Orquestra Filarmônica de São Bernardo, que se tornou, em julho, a OCI (Orquestra Contemporânea Innovare), com objetivo de conquistar espaço em outros países e sair do modelo convencional de apresentações baseadas em músicas clássicas. 

A ideia de se reinventar e deixar de depender somente do poder público para tornar-se autossustentável surgiu da necessidade de englobar novidades à música clássica. O projeto busca levar alegria de forma leve e divertida, unindo o tradicional ao moderno, o erudito ao popular e, também, aproximar o público. 

O regente da orquestra já é, por si só, o exemplo de inovação. Um jovem negro, vindo da periferia, autodidata e de ideia ousada, o maestro Fernando Mathias, 30 anos, percebeu que o público interagia melhor ao que se aproximava de sua realidade. Em 2019, o grupo realizou concerto em homenagem ao personagem Chaves, do seriado mexicano que ganhou o coração do mundo todo. De lá para cá, a lâmpada da mudança foi acesa.

“O concerto do Chaves foi um sucesso, e é até hoje. Percebi que as pessoas gostam mais daquilo que elas conhecem, só consomem aquilo a que têm acesso”, explica o maestro. “Muitas pessoas pensam que orquestra é coisa de gente rica, mas ela está presente na nossa vida em diversas vinhetas e trilhas sonoras. Unindo músicas populares à orquestra, conseguimos aproximar o público e levar esse conteúdo a quem acha que não gosta do modelo, porque não teve essa aproximação”, diz Mathias.

O maestro lembra que a Orquestra Filarmônica São Bernardo ficou desde novembro do ano passado sem realizar concertos, tanto por falta de verba quanto de patrocínios. Foi a partir daquele momento que Mathias buscou sair da zona de conforto e procurou pessoas que pudessem dar um novo caminho à música clássica. “Mudar o estilo é sempre um desafio. Mas eu sabia que seria necessário”, garante. “Não existe nenhuma orquestra contemporânea, pelo menos não no Brasil. E então temos um vasto mercado a ser explorado”, vislumbra o maestro.

A missão do projeto, portanto, busca oferecer melhor experiência criativa, multissensorial e multimídia para que as pessoas possam sentir a música em sua plenitude. Desta forma, Mathias reforça que não terá um formato específico e também não ficará restrita apenas à música erudita, podendo ter variações e formações diferentes, dependendo do tipo de apresentação.

ESPERANÇA

A mudança de formato da orquestra também está sendo motivo de comemoração pelos músicos do grupo, sobretudo porque a ideia, agora, é ir além do Grande ABC e ganhar o público mundialmente.

Emerson Andrade, 42, é o paizão da orquestra. Com experiência, sobretudo em música popular, o trombonista foi músico de programas de televisão, como o da Hebe, fez parte de apresentações de cantores como Fábio Júnior e banda Raça Negra, e até foi integrante de um musical do ex-global Miguel Falabella. “Eu trabalhava em fábrica, mas não era feliz. Tocava em banda de amigos, e eles me incentivaram a aprender profissionalmente. Comecei em 2005 e estou até hoje nessa vida”, conta. 

Amigos da extinta Orquestra Filarmônica de São Caetano, o tocador de tuba Marcos Marques, 32, e o trompetista Saulo Oliveira, 33, começaram na música ainda crianças, por meio da igreja. “Me formei em design de produtos, mas percebi que minha vida seria essa”, revela Marcos. “Minha mãe fez um ano de faxina em casa de família para comprar um trompete para mim, e até hoje essa é minha maior motivação. O esforço dela, lá atrás, tem de ser recompensando e, toda vez que estou no palco, penso nisso”, diz Saulo.

Vendo a orquestra vivendo de “migalhas”, os músicos sentiam a dificuldade de viver do que amam fazer, e em tocar algo que atraísse as pessoas. Depois do espetáculo do Chaves, revelam que sentiram a sinergia do público, que se fez parte da apresentação. Hoje, segundo eles, esperam alcançar pessoas que ainda não foram “tocadas” pela música clássica. “Vamos oferecer para o público novas experiências”, garantem.

Amor à música levou empresário de São Bernardo a ajudar o grupo

O empresário Satoshi Fukuura é quem está à frente da estruturação e profissionalização da OCI (Orquestra Contemporânea Innovare). Filho de professora de piano, ele garante que a decisão de abraçar o projeto se deu “por amor à música”. 

"No ano passado, estava na Câmara de São Bernardo falando sobre projetos sociais e o maestro Fernando Mathias foi falar comigo e pedir uma ajuda. Eu gosto de desafios. E também por amor à música e por acreditar que ela é necessária, investi nisso”, explica, revelando que financeiramente não precisou de muito. “No entanto, manter uma orquestra é coisa de R$ 120 mil ao mês. Precisamos fazer o caixa girar”, afirma.

Fukuura revelou que, com o mundo todo em crise pela pandemia da Covid-19 e o setor cultural sofrendo perdas, achou interessante quebrar paradigmas e apresentar algo novo. “O futuro é encontrar palco para eles tocarem, e não necessariamente físico. A ideia é pegar uma música boa e transformar em algo que vá além do auditivo. Juntar luzes, estilos musicais, lugares. Unir artes diferentes”, reforçou.

O empresário acredita que a orquestra tem de se adaptar ao tempo, e atrair público que “se perdeu” e ficou classificado como “antigo”, afirmando ainda que também espera contar com apoio de empresas privadas, leis de incentivo e do setor público.

ADOTE UM MÚSICO

A Orquestra Contemporânea Innovare já tem disponível acervo no canal oficial do Youtube. O conteúdo artístico pode ser apreciado virtualemente até que os músicos possam voltar a fazer apresentações, já que ainda há restrições por conta da pandemia da Covid.

Em decorrência dessa condição, está sendo aberta uma campanha virtual, denominada Adote um Músico, que visa arrecadar recursos e contribuição espontânea para continuidade do projeto. A proposta é que as pessoas participem, fazendo doações de qualquer valor por meio do site https://benfeitoria.com/movimentoculturaldoci.

Da periferia ao mundo

Nascido em 1990, Fernando Mathias, 30 anos, teve de percorrer longo caminho para tornar-se maestro. Autodidata, o jovem negro da periferia de Santo André iniciou sua vida musical aos 8 anos, enquanto também brincava nas ruas do Jardim Aclimação.

“Meus amigos, em dado horário, iam para casa e saíam arrumados, com maletas nas mãos. Uma vez perguntei onde iam e o que carregavam, mas não quiseram contar. Um deles, um dia, me disse que iam para aula de música na igreja”, lembra Mathias.

Filho de pai sem profissão, que fez bicos ao longo da vida, e mãe manicure, o maestro teve um início de vida que classifica como “simples e difícil”. “Desde pequeno imitava o Pavarroti (tenor italiano), mas não por incentivo, porque minha família não escutava música clássica. Eu pincelava aquilo que via na televisão e reproduzia”, contou. Lembrou que, sem contato religioso, passou a frequentar, aos 11 anos, a Igreja Batista de Calvário, na Vila Luzita, para integrar a orquestra, levado pelos colegas.

“Autodidata, fui aprendendo tudo o que compunha a orquestra. Aos 13 anos, imitei o maestro e, ele vendo, me disse que um dia eu iria reger. Daquele dia em diante nunca mais parei”, conta Mathias, que, aos 15 anos, conseguiu bolsa de estudo na Fundação das Artes de São Caetano, passou a participar de grupos amadores e, depois, de formações profissionais.

Em 2016, com a Orquestra Filarmônica de São Caetano extinta, decidiu que era hora de criar seu próprio grupo, quando reviveu o modelo em São Bernardo, já que a antiga Orquestra Filarmônica da cidade tinha parado havia dez anos. “Mas chegou o momento de ir além, mudar o formato, e ganhar o mundo”, diz, sobre o novo projeto da OCI (Orquestra Contemporânea Innovare).

Casado e pai do Bernardo, 2 anos, maestro Mathias revela que espera servir de exemplo, já que não se ouve falar em regentes negros. “Tenho a oportunidade nas mãos de puxar uma fila de pessoas, sobretudo negras, que esperam sua vez. Nunca assisti a um negro regendo uma orquestra, e sinto que posso ser vanguarda nisso”, acredita.

Para ele, a música levou para sua vida o que chamou de “solidez”. “Decidi que seria músico ainda pequeno. Como jovem negro, da periferia, tive diversas oportunidades erradas. Mas não. Eu optei por essa vida, e acho que tenho potencial de quebrar esse paradigma de que regentes têm de ser brancos, da socialite, mostrando que negros da periferia também podem alcançar esse patamar”, finaliza.




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