Cultura & Lazer Titulo
Cinema no calor da hora
Ricardo Lísias
Especial para o Diário
07/11/2006 | 21:09
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O próximo encontro dos Seminários Avançados sobre a Literatura Moderna Latino-americana terá uma programação diferente da que o público desse e dos outros ciclos se acostumou: pela primeira vez o foco central não será a literatura. A partir da análise de três filmes, Terra em Transe, Memórias do Subdesenvolvimento e A Batalha do Chile, procuraremos discutir o cinema latino-americano, aliás exatamente no momento em que a sétima-arte torna-se extremamente valorizada na região.

Ao discutir Terra em Transe (e sempre tendo Deus e o Diabo na Terra do Sol como auxiliar para o debate), procuraremos entender como Glauber Rocha fez a forma cinematográfica imbricar-se com a realidade que ele procurava criticar para construir uma espécie de obra-manifesto radical e influente. Terra em Transe, filmado em 1967, em plena ditadura militar, portanto, recria a tensão política do período a partir das inquietações de um intelectual confuso entre a prática estética e a participação política. A ambigüidade de valores e, sobretudo, a violência que o poder acarreta tornam o mundo praticamente enlouquecido. A partir da sobreposição de planos, do acúmulo de closes e dos giros velozes de câmera, Glauber Rocha faz a forma cinematográfica passar ao leitor uma sensação nauseante e às vezes praticamente sem limites.

A Batalha do Chile, documentário também feito no calor da hora por Patricio Guzmán, divide com Terra em Transe a tensão entre os grupos populares e o poder político, sempre demonstrando que a justiça social, reivindicação dos primeiros, acaba sufocada pela violência policial, principal elemento de controle dos governos. O filme explica a grave crise que acompanhou o governo de Salvador Allende, observando tanto a mobilização popular quanto a oposição que a classe média, aos poucos, impôs ao governo mais legitimamente de esquerda que a América do Sul já teve.

As cenas são todas extraídas de reportagens da época, material de arquivo e de cinegrafistas amadores que, por sorte, registraram a violência com que Pinochet tomou o Palácio de La Moneda. O tom de realismo divide o foco com certo didatismo, caracterizado pelas explicações que o narrador faz, ao fundo, sobretudo para justificar a colagem de algumas cenas e o andamento das imagens.

Tanto Glauber Rocha quanto Guzmán, cada um evidentemente no seu gênero específico, manejam a forma cinematográfica para constituir uma espécie de explicação problematizadora de suas realidades. Já Memórias do Subdesenvolvimento, outro filme notável (a propósito lançado no mesmo ano que Terra em Transe), traz para o centro da câmera a história cubana, dando especial atenção para o período de consolidação do regime de Fidel Castro. O filme une o documentário à ficção de maneira quase poética para contar a história de uma personagem solitária em Havana. Obviamente, trata-se quase de uma “metonímia” para a situação da própria revolução, praticamente isolada em toda América Latina, até por que o continente fazia o caminho simetricamente oposto: os movimentos populares e de esquerda estavam, àquela altura, sendo sufocados por regimes cada vez mais conservadores.

Enfim, procuraremos fazer com que a literatura dialogue com o cinema para compreender como a arte, de maneira ampla, representou um dos períodos mais críticos da história da América Latina. Vale lembrar que estaremos, o tempo inteiro, falando de história recentíssima, ou seja, de nós mesmos.

Ricardo Lísias, 31 anos, é mestre em Literatura e História pela Unicamp e doutor em Literatura Brasileira pela USP. É escritor, ensaísta e professor. Escreveu, entre outros título, os romances Cobertor de Estrelas (Rocco, 1999), Dos Nervos (Hedras, 3004) e Duas Praças (Globo, 2005).




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