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Cultura além do coreto nas sete cidades
Gislaine Gutierre
Do Diário do Grande ABC
11/03/2009 | 07:00
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O espetáculo foi exibido no último fim de semana em Santo André, mas nem por isso é página virada. A vinda de Calígula ao Teatro Municipal de Santo André foi um dos bons sinais da cultura na região em tempos de apreensão pelo que virá em novas administrações nas sete cidades. O Dia Internacional da Mulher, no último domingo, foi prova de como o poder público nos sete municípios pode trabalhar a desserviço da cultura. Em contraposição à festinha de coreto proposta por alguns (e aí vale excluir o show de Rita Ribeiro), veio uma montagem de peso encabeçada por um galã global, Thiago Lacerda.

Não que a presença de um famoso na telinha deva garantir, por si só, agenda nos espaços da cidade. Mas esta montagem, em especial, trouxe o que falta, em larga escala, ao Grande ABC: cultura de verdade. Calígula é uma montagem louvável. Gabriel Villela, no posto de diretor, não lançou mão de recursos apelativos para garantir lotação nos teatros ou espaço na mídia. Optou por uma montagem instigante e atemporal. Embora tenha como foco o imperador romano e suas sandices, o contexto histórico era até prescindível para que o espectador pudesse desbravar as múltiplas interpretações à qual a peça convidava.

Thiago Lacerda foi um gigante. Não pelo 1,95 m de altura que fez perderem o fôlego as fãs que assumidamente compraram ingresso para conferir seus dotes físicos. Mas porque Thiago teve a coragem de desconstruir a imagem de galã - conceito que comumente fica na linha tênue entre o elogio e o desprezo. Thiago encarou um Camus cheio de linhas e entrelinhas. Incorporou a insanidade de um anti-herói que podia despertar raiva, medo e até piedade. Mas que acima de tudo instigava. Afinal, qual era a loucura maior? A igualdade imposta pelo derramamento de sangue ou a manutenção de um status quo que ceifa vidas lentamente e sob o manto ‘sagrado' da lei e da segurança pública?

Calígula buscou referências no passado para escarafunchar o presente.

E nada melhor que isso do que uma costura brechtiana na encenação. Afinal, com mantos de papel kraft para o figurino, o aviso do próprio Thiago para o fim de cada ato e a presença de um integrante da equipe espirrando sangue na atriz com um esguicho do tipo ‘passe bem', ficava claro que tudo não passava de teatro. E era um choque de realidade.

Os aplausos efusivos de uma platéia que na sexta-feira ocupou meia casa e que - segundo os produtores - lotou o Teatro no sábado e no domingo, levam a crer que existe sim, no Grande ABC, um público ávido por novidades, por espetáculos de qualidade, por cultura ‘pensante'. E como se ‘pensante' fosse sinal de pejorativo.

Mas há bons sinais: um deles é a temporada de Nekropolis no Teatro Conchita de Moraes, em Santo André. A peça, que pode ser vista de graça até 31 de maio, é feita pelo Núcleo 10 de Formação da ELT (Escola Livre de Teatro), um centro de excelência na linguagem, cujo destino sabe-se lá qual será na nova administração.

O outro bom sinal é que, de 23 a 31 de maio, o mesmo produtor de Calígula, Wil Lanzillo, traz para o Teatro - e desta vez com ‘temporadinha' de duas semanas, de sexta a domingo - Denise Fraga com sua A Alma Boa de Setsuan. Peça elogiadíssima, detentora de dois prêmios APCA e cinco indicações ao Prêmio Shell. Por coincidência, mais um Brecht (neste caso, no texto mesmo).

Se vai vingar a investida em temporadas, é torcer para ver. Pois público não se cria da noite para o dia. Consciência cultural tampouco. Mas bem que não seria nenhuma caridade - além de mera obrigação - que o poder público passasse a oferecer sua cota de investimento na cultura, aquela que alimenta não necessariamente os bolsos, mas a alma e o espírito crítico. Para ao menos mostrar-nos que haverá vida cultural além do coreto.




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