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Fronteira voraz
Ângela Corrêa
Do Diário do Grande ABC
24/05/2009 | 07:00
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Divulgação


A segunda edição do livro Fronteira - A Degradação do Outro nos Confins do Humano (Editora Contexto, R$ 35, 192 páginas) do sociólogo José de Souza Martins, de São Caetano, chega às livrarias. O volume, que ganhou versão revista e atualizada, é resultado de intensa pesquisa de Martins, que reuniu mais de 200 horas de entrevistas gravadas na região da Amazônia.

Em entrevista ao Diário, o sociólogo, professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, conta como foi a experiência - solitária - nos confins do Brasil, que resultou em relatos que mostram quanto nossa sociedade corre numa espécie de "rito antropofágico, em que nos devoramos a nós mesmos", define.

DIÁRIO - Quais são os aspectos de fronteira que o senhor aborda em sua obra? Por que escolheu o tema como objeto de estudo?

JOSÉ DE SOUZA MARTINS - Quando decidi fazer a pesquisa sobre os confins da sociedade brasileira, a fronteira, fui particularmente motivado pelo fato de que a Amazônia era a última fronteira do mundo e sua intensa ocupação na época era o último evento de expansão territorial de uma sociedade nacional. Era a última oportunidade para que um sociólogo fizesse uma pesquisa sobre a condição humana em situação de limite. Minha principal descoberta é a de que o que parece fronteira espacial é, na verdade, fronteira do humano, aquela em que as pessoas de um lado imaginário não reconhecem a humanidade das que estão do outro lado. Somos uma sociedade organizada sobre essa espécie de rito antropofágico, em que nos devoramos a nós mesmos. Momentos dessa recusa da humanidade do outro, na pesquisa, é o estudo dos raptos étnicos de mulheres e crianças, o que ocorreu entre nós até os anos 1980. O caso mais dramático e intenso foi, sem dúvida, o do amor impossível do índio suruí Oréia e da colona branca Arminda, adolescentes, uma tragédia shakespeariana na selva. E também o renascimento da escravidão por dívida entre nós, a drástica redução da pessoa à condição de coisa e, portanto, de desumana. Na época o Brasil chegou a ter cerca de 400 mil escravos.

DIÁRIO - O trabalho demandou mais de 30 anos de pesquisa, que abrangem períodos políticos tensos no País. De que maneira isso influenciou suas atividades?

MARTINS - A parte substancial e detalhada da pesquisa tomou-me dez anos, de 1975 a 1985. Depois, voltei episodicamente a diferentes lugares da Amazônia, período em que me dediquei à preparação de um imenso banco de dados, com informações sobre milhares de conflitos, e à reunião de documentos e estudos tópicos. A pesquisa foi iniciada num período politicamente muito complicado, especialmente na Amazônia, tensa não só por conta dos conflitos entre índios e brancos e dos conflitos entre posseiros e grileiros (e mesmo empresas), mas também por conta de uma vigilância remanescente da repressão política e militar à Guerrilha do Araguaia, tudo muito perto dos lugares em que estava fazendo pesquisa. Essas situações estavam previstas na pesquisa, pois era pesquisa justamente sobre elas, sobre as diferentes modalidades de conflito na fronteira, a que o próprio pesquisador não fica imune.

DIÁRIO - O senhor relata que seu trabalho de pesquisa de campo foi solitário. Por que optou por não ser acompanhado por uma equipe durante as viagens?

MARTINS - Na pesquisa sociológica de situações de conflito é preferível não trabalhar em equipe, para não complicar o número de sujeitos "de fora" que a população local e nativa tem que interpretar para com eles se relacionar. Pesou muito, também, o fato de que não consegui apoio das agências de fomento para realização de minha pesquisa. Em boa parte porque não havia tradição de pesquisas sociológicas sobre fronteira.

DIÁRIO - A obra apresenta e analisa casos em que os conflitos de fronteira produziram resultados trágicos. O senhor vivenciou alguma situação que ameaçou sua integridade física?

MARTINS - Várias pessoas que conheci e que estavam sobre o fio da navalha da conflitividade fundiária e política na Amazônia foram assassinadas. Eu me vi vigiado e ameaçado em várias ocasiões. Numa delas, no sertão do Mato Grosso, quase fui esfaqueado por um sujeito que me confundia com um sacerdote ameaçado de morte, meu amigo, para cuja casa eu estava me dirigindo e onde ia me hospedar. Consegui convencê-lo que eu não era a pessoa que ele procurava.

DIÁRIO - Como foi a continuidade da pesquisa para o lançamento da edição atualizada?

MARTINS - Nos anos seguintes continuei alimentando meu banco de dados com informações relevantes sobre a Amazônia, relativas aos eixos teóricos de minhas descobertas empíricas e teóricas. Tanto que nesta nova edição do livro, doze anos após a primeira, fiz apenas ajustes e atualizações. Na essência minha análise teórica e interpretativa vem se confirmando ao longo dos anos.




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