Política Titulo 60 anos do Diário
‘A moradia é um direito que a gente tem’
Francisco Lacerda
Do Diário do Grande ABC
05/05/2018 | 07:00
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Formada ‘pela vida’, a baiana de Itabuna Maria das Dores Cerqueira, 48 anos, é a coordenadora nacional do MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto), onde diz ter aprendido que tem ‘direitos’. Começou na militância em 2007, quando ‘nasceu para a vida’. Um ano depois chegou ao Grande ABC. Mãe de cinco filhos e avó de 13 netos, mora em Santo André e é a responsável pela conquista da moradia a 910 famílias no Residencial Novo Pinheirinho, no Jardim do Estádio, do qual vai herdar um dos apartamentos. Para ela, ocupar não é ilegal. “Se Deus deixou a terra para todo mundo, por que só meia dúzia tem acesso a ela?”

Qual a sua formação?
Foi a vida que me formou. Entrei no movimento em 18 de março de 2007. Depois disso que tive a formação. Aprendi que tenho direitos, coisa que não sabia. Hoje, o que tenho e o que sei foram por meio do movimento. O capitalismo não dá brecha de abrir a consciência da gente. Muito pelo contrário. Então, o movimento foi a maior lição de vida para mim, foi minha formação.

Quando decidiu que queria ser militante? E por quê?
Foi automático. Quando entrei no movimento foi quando ‘nasci’ para a vida, isso aos 22 anos. Entrei em ocupação chamada João Cândido (396 famílias – Condomínio Salete, Itapecerica da Serra) e uma semana que eu estava lá, mesmo sem nem ao menos sugerir, o grupo ao qual pertencia me elegeu como uma das coordenadoras, ou seja, para ajudar o grupo. Foi onde descobri que não é só lutar por moradia, mas sim por nossos direitos. Então, onde tiver desigualdade social a gente vai continuar lutando até o fim. A partir do momento em que a gente escolhe ser militante – a gente tem o livre-arbítrio –, é porque já houve todo um processo. Percebi que a moradia é só um dos direitos que a gente tem. Hoje não luto só pela minha moradia, mas por melhores condições de vida para a classe trabalhadora. O caminho é árduo, mas vale a pena.

Onde a senhora nasceu? Quando se deu a vinda ao Grande ABC? Por quê?
Nasci em Itabuna, na Bahia. Vim para São Paulo em 1988. Retornei à Bahia e voltei definitivamente em 1993. Para o (Grande) ABC vim em 2008. Minha vinda ao (Grande) ABC foi pela necessidade de o movimento se ampliar. Então, com um ano de militância já vim para tentar implantar o movimento no Grande ABC. Com muito sucesso.

Como e onde foi o início de sua atuação na luta pelo direito à moradia?
Intenção era lutar apenas pela minha moradia. O resto eu não queria saber. Mas vi que tinha organização muito maior do que imaginava. Para mim era só montar meu ‘barraquinho’. Mas aprendi que não é bem assim. Faz toda diferença a gente viver coletivamente, dividir, não pensar só no próprio umbigo e sim se preocupar com outras pessoas. A gente pode se ajudar. Juntos somos mais fortes.

A ocupação em terreno no Jardim do Estádio, em Santo André, aconteceu em 2 de março de 2012. De lá para cá quais foram as dificuldades nas negociações para chegar até o Residencial Novo Pinheirinho?

Foi muita luta, com a Prefeitura, com o Estado. A gente ficou mobilizado o tempo todo e foi por meio da pressão da massa que conseguimos ter resultado, de abrir negociação com o governo municipal para que desse vazão, porque a gente nem ao menos conhecia o proprietário. A Prefeitura fez esse meio campo. E a primeira coisa que recebemos foi o despejo, a liminar de reintegração de posse. Mas por meio de luta a gente ‘quebrou’ essa reintegração. Depois, conversando e negociando, chegamos a um acordo. Não foi fácil porque o sistema capitalista e a especulação imobiliária são muito grandes em nosso País e tornam muito difícil a gente poder dizer ‘eu quero comprar o seu terreno coletivamente’.

Quantas famílias são beneficiadas? São todas integrantes do MTST?
São 910. Sim. O MTST é que vai gerir tudo. Claro que a gente fez acordos. Inclusive um deles foi com a Prefeitura, que colocou quase R$ 5 milhões na compra do terreno. Então, abrimos espaço para as famílias que estavam em áreas de risco e em bolsa aluguel. São essas famílias em vulnerabilidade social que virão para cá (Pinheirinho). E elas acabam estando vinculadas ao MTST também.

Todas as ocupações têm realmente intuito da conquista da casa própria ou algumas são mais para chamar atenção para o deficit na Habitação?
As duas coisas ao mesmo tempo. Além de chamar atenção, a gente precisa construir moradias, apesar de não ser tão fácil. Nesse sentido, as ocupações são para dizer ‘olha, tem deficit habitacional e precisa ter espaço para essas famílias’. E o governo diz que não tem condição, mas ele tem condição, o que não tem é interesse. Mas tem o ditado ‘água mole em pedra dura tanto bate até que fura’. Nós somos a água. E a pedra a gente amolece.

A senhora vê as ocupações, sobretudo em áreas particulares, como desrespeito às leis e à sociedade de modo geral? Por quê?
Não. Porque tenho meu jeito de pensar: se Deus deixou a terra para todo mundo, por que só meia dúzia tem acesso a ela? Todo mundo deveria ter. Se a terra não tem sua função social a gente acaba dando essa função. Por que tem terra que está ao Deus dará servindo à especulação imobiliária? Então, nós ocupamos. Não com interesse de tomar, mas para dizer que nós vamos usá-la e estamos dispostos a usá-la. Não acho que isso seja ilegal. É totalmente legal. Damos abrigo às famílias.

Qual fato mais a marcou nesses anos à frente das ocupações?
Bom e ruim. O ruim é a gente ver que tem direito e o Estado, por sua vez, usar o mecanismo da força policial – e o aparato do Estado é muito forte – para combater questão que não é crime, que são as ocupações. Isso deixa a gente bem triste. Porém, não desanima. A polícia foi feita para proteger, não para desabrigar e bater nas pessoas. A boa é que com isso a gente só se fortalece. Não abaixa a cabeça para ninguém, independentemente de quem quer que seja, de que política seja, de quem esteja, de quem é o dono.
 
A senhora já sofreu ameaças? Ou sofre?
As duas coisas. A partir do momento em que a gente se torna figura pública e está à frente de processo, principalmente sendo do MTST, sofre, porque a gente faz a diferença e a diferença sempre incomoda.

Além do Pinheirinho, qual foi o maior ganho?
A gente tem várias conquistas. No (Grande) ABC, por exemplo, temos encaminhado o Rosa Luxemburgo, em Santo André; Uziel Alves, em Mauá, em terreno da Dersa e que hoje se encaminha para finalização do processo; e São Bernardo, que foi luta árdua, de sete meses, na qual estavam tudo e todos contra nós. Mas a gente conseguiu, por meio da pressão do povo.

O ex-governador Geraldo Alckmin deixou o Palácio dos Bandeirantes dia 6 e não cumpriu série de promessas ao Grande ABC. A Habitação também foi prejudicada?
Prejudicou todas as áreas. A partir do momento em que se tem acordos, promessas, têm de ser cumpridos. Quando não se cumpre, como vamos acreditar? Você prometeu e não cumpriu, todos perdem. Precisa, de fato, rever, porque isso prejudica.

Como a senhora vê o desabamento de prédio ocupado por sem-teto no Centro de São Paulo?
Infelizmente aconteceu essa tragédia. Não era o MTST que estava coordenando a ocupação nesse prédio. Mas estivemos lá, sim, no dia da tragédia para prestar solidariedade.

Existiu a denúncia de que na ocupação do prédio havia cobrança de aluguel aos sem-teto. O que tem a dizer sobre isso?
O MTST não cobra R$ 1 de ninguém. A gente só cobra luta e participação. O pessoal que participa do MTST pode confirmar. Se estavam cobrando aluguel na ocupação é questão que diz respeito ao movimento (MLSL – Movimento de Luta Social por Moradia) que estava na coordenação da ocupação.

Em 11 de maio o Diário completa 60 anos. Qual teria sido a maior contribuição do jornal, em sua avaliação?
Algumas contribuições positivas. Quando a gente fazia as negociações na Prefeitura (sobre o Pinheirinho) o Diário estava lá. Quando a gente saía junto com o prefeito, ou o secretário de Habitação, a gente falava a mesma língua e saía o correto. Fora dali, nas negociações, com as pessoas ilustres, também saía o correto.

A senhora se lembra do primeiro contato com o Diário?
Em 2010. No (bairro) Cidade São Jorge (Santo André), em ocupação próxima dali, no aterro, onde colocavam o lixo.

Lembra-se quando o Diário publicou a primeira reportagem a seu respeito ou ao Pinheirinho? Qual a razão?
Sim. Teve até bastante contribuição do Diário nesse sentido, com fotos e comentários ao nosso favor – e outros descendo a lenha –, mas tudo faz parte do processo. Enquanto o movimento estiver organizado a gente não vai deixar que isso nos abale.

Em algum momento da luta pela Habitação o Diário lhe foi útil? Como?
Foi e continua sendo em alguns aspectos. Por exemplo, a gente tem bastante conversa com o prefeito e com a Secretaria de Habitação e o Diário sempre publica. E tudo que o prefeito, o secretário ou algum parlamentar coloca a nosso favor o Diário publica. Mês passado mesmo teve a questão das entregas e saiu matéria muito boa.

O que mais o Diário pode fazer para fortalecer a Habitação da região?
O Diário tem tudo para ser o canal do diálogo entre governos e movimentos sociais. Tem tanta coisa para a gente melhorar, para a gente explorar e o Diário seria belo canal para isso. Não só na Habitação, mas em Saúde, Educação, na questão dos direitos, enfim, o Diário tem tudo para isso, mas precisa saber colocar os pingos nos ‘Is’. Aí, sim, a gente pode contar 100% com o Diário.

Em relação à prisão de Lula, a senhora acha que houve desrespeito à Constituição?
Rasgaram nossa Constituição! Desrespeito total. Disparate muito grande. Com tantas provas contra outras pessoas, como Aécio Neves... Isso é perseguição política. Nós fomos fazer ‘visita’ no tal triplex. Quando mostrado na televisão, nossa! Que apartamento! Quando cheguei lá, vi que era inferior aos do Pinheirinho. Aquele apartamento não vale isso (prisão de Lula). Foi montagem que fizeram. Nosso Judiciário tem partido. Não sou vinculada a partido nenhum, sou MTST, mas isso irrita bastante. Ver a injustiça e a bagunça que está o Judiciário faz com que não tenhamos mais em quem confiar. Gosto muito do Lula, o melhor presidente que a gente teve. O cara virou lenda. A frase que colocaram é verdade mesmo: ‘Se me prenderem viro herói, se me deixarem solto viro presidente’. Se soltarem ele, vira presidente. Mas poderia ter feito mais, não foi só maravilha.

Que futuro espera para o Grande ABC?
Se tiver vontade política dos que vierem, se quiserem entrar no barco para melhorias, a gente vai estar juntos. Caso contrário, o (Grande) ABC terá série de mobilizações e de ocupações até chegarmos aos nossos direitos. Da mesma forma que construímos o Pinheirinho, construiremos as moradias às pessoas que tanto precisam. E são milhares de pessoas aqui (região). O governo não pode fechar os olhos. Quem tiver compromisso de fato, compromisso com o cargo que ocupa, se tiver consciência, a gente não vai precisar de mobilizações. Mas se não tiver, haverá muitas ocupações no (Grande) ABC. Muitas lutas. A gente não vai parar por aqui.

Uma mensagem ao leitor do Diário.
Faça reflexão, uma autocrítica e trate as pessoas como gostaria de ser tratado, com amor, carinho e dedicação. Não precisa conhecê-las para ser solidário. Tenha amor no coração e ajude. Somos seres humanos e precisamos estar juntos, sermos mais fortes, para combater coisas muito maiores. E saber quais são nossos direitos. 

Maria das Dores Cerqueira e o Diário

Maria das Dores Cerqueira diz que “muita luta virá no Grande ABC” e que o Diário é “belo canal de diálogo” entre o movimento social e os governos municipais. “Mês passado mesmo teve a questão das entregas (de apartamentos no Pinheirinho) e saiu uma matéria muito boa.” Essa confiança vem desde 2010, quando teve o primeiro contato com o jornal, em ocupação no bairro Cidade São Jorge, em Santo André. Diz que o MTST já possibilitou cerca de 6.000 moradias a famílias vinculadas ao movimento em todo o País. E, apesar das ameaças, não desiste. “Percebi que moradia é só um dos direitos que a gente tem.”




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