Política Titulo 60 anos em 60 entrevistas
‘Todos jogavam fubeca, eu batia bola no paredão’
Dérek Bittencourt
Do Diário do Grande ABC
23/03/2018 | 07:00
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Celso Luiz/DGABC


Antonio Carlos Moreno, 69 anos, é uma daquelas figuras associativas. Impossível citá-lo sem ligá-lo ao vôlei. Com 366 jogos pela Seleção Brasileira, incluindo quatro Olimpíadas e quatro Mundiais, o andreense – que saiu do IAPI (Instituto de Aposentadorias e Pensões dos Industriais) para trilhar história no esporte – honrou a camisa verde e amarela. Hoje, da sacada de onde mora, vê os prédios do antigo condomínio na Vila Guiomar. E, de lá, o pai de seis filhos e avô que aguarda o nono neto busca inspiração e agradece o esforço que a mãe fez para criá-lo, permitindo que se transformasse em uma das pessoas que mudaram a modalidade no País.

Antonio Carlos Moreno e o Diário

Apesar de ser personagem ligado ao vôlei, Antonio Carlos Moreno iniciou a relação com o Diário – ainda News Seller – em outras modalidades. Enquanto defendia o Colégio Américo Brasiliense, teve fotos publicadas disputando (e ganhando) competições de natação, atletismo, handebol, basquete... Entretanto, com o passar dos anos e o protagonismo assumido pelo ex-jogador no vôlei desde os tempos de Randi EC e, sobretudo, enquanto defendeu o CA Pirelli, sem deixar de citar as inúmeras vezes retratado com a camisa da Seleção Brasileira, sua presença nas páginas se transformaram em rotina.

O que significa para você o rótulo de primeiro ídolo do vôlei brasileiro?
É um título, reconhecimento de que realmente me dediquei muito. Sempre fui atleta determinado, fominha. Isso não veio de dia para o outro. Comecei cedo. Esse ídolo nasceu praticamente depois de uns dez anos que estava treinando e jogando, numa vida muito sacrificada. Fui criado nos prédios do IAPI. Todos jogavam fubeca, eu pegava a bola de vôlei e ia bater no paredão. Fui muito precoce. As coisas aconteceram e depois de 1964 veio um atropelamento: melhor jogador infantil, depois juvenil, convocado à seleção adulta. Ninguém até hoje foi titular da Seleção Brasileira aos 17 anos. De repente, me vi em situação de ser reconhecido por diferentes técnicos e clubes. Sempre fui um cara insatisfeito e não queria sair de quadra. Tinha prazer em jogar, naquela época que precisava ser jogador completo, então me aperfeiçoava em todos os fundamentos. Acho que esse título de primeiro ídolo foi consequência. Foi época que o vôlei saiu do desconhecido e passou a ser respeitado. E eu estava lá como titular e capitão (da seleção), o que pesou muito.

Como foi ser um dos precursores de modalidade que tornou-se tão vitoriosa no País?
O vôlei cresceu muito. Antes, tinha um conceito meio estranho: era considerado para idosos ou mais ao feminino do que ao masculino. Todos os homens corriam ao futebol, basquete, handebol... Mas me identifiquei muito com o vôlei, por ser jogo de equipe, de variação imensa, esporte de reflexo. Para ter uma ideia, um dos primeiros campeonatos brasileiros infantis que joguei era melhor de três São Paulo x Minas (Gerais). Não tinha mais nada. O primeiro torneio oficial foi em 1964, quando vieram outros Estados. Mas o vôlei foi crescendo de forma absurda, principalmente depois que começaram a aparecer alguns ídolos. Acredito que contribuí, de vez em quando aparecem pessoas que dizem: ‘Me espelhei em você’. Não sei se precursor é a palavra mais correta, mas fiz parte de passado que construiu a modalidade.

Foram ao menos duas oportunidades de carregar a tocha olímpica e outras duas de ser porta-bandeira em cerimônia de Pan e Olimpíada. O que estes momentos representaram?
São momentos que recordo com clareza. É gostoso, sensacional. Estar ali com a bandeira do Brasil (na abertura do Pan do México e no encerramento da Olimpíada de Moscou) te balança. Fica mais emocionalmente abalado do que quando está em quadra. O Brasil passou por diferentes épocas e hoje atravessa outra, mas sempre tive orgulho do País, em vestir a camisa. Na carreira tive várias oportunidades de sair do Brasil, mas nunca quis. Recusei convites da Itália, Argentina, Japão... E a tocha foi reconhecimento muito legal. Tanto a do Pan (2007) quanto a de 2016 (pelas ruas de Santo André). Quando disseram que o Comitê Olímpico Brasileiro estava escolhendo 400 atletas a carregar a tocha em 2016, me perguntaram: ‘Moreno, onde quer carregar?’. Escolhi a cidade onde nasci. Foi sensacional, porque as pessoas puderam ver outro Moreno. A família toda estava lá, foi muito bacana. Sou muito emotivo para essas coisas. Vivo intensamente esses momentos, porque não voltam mais. São especiais.

O Grande ABC sempre foi um celeiro de atletas, tendo fornecido muitos nomes aos Jogos Olímpicos. Atualmente, o cenário mudou muito. Por quê?
O Brasil, em si – vou chegar a Santo André e ao Grande ABC –, está na contramão do conceito esportivo. A gente não tem ainda cultura e política esportivas. Hoje convivo com o Comitê Olímpico (Brasileiro, onde trabalha) e acompanho as dificuldades que existem. A base de tudo é a Educação Física. Sou muito grato ao Américo Brasiliense e ao professor Paulo Rezende. Aquele colégio sempre foi um celeiro, porque ali tinha Educação Física e um profissional da Educação Física. Fundamentalmente, tinha quadra, espaço e um cara apaixonado que levava todo mundo. Hoje você vê a abolição da Educação Física, o esporte não é conceituado como fator fundamental na educação e formação de pessoas. A gente perdeu esse bonde do esporte e, seguramente, demore muito e nunca nos tornemos um País que em 2016 quis ser potência olímpica, teve resultados fantásticos na organização e medalhas, mas está muito distante. Santo André e o Grande ABC foram berço. Lembro de ocasião que fomos aos Jogos Pan-Americanos com 37 pessoas de Santo André, porque tínhamos dirigentes que gostavam de esporte, o reconheciam como promoção da saúde, valorização da Educação, formação de caráter. Isso não acabou, o que acabaram foram as oportunidades. Hoje ficamos à mercê dos nossos dirigentes, presidentes, governadores, prefeitos... A iniciativa privada está fazendo projetos esportivos de maior qualidade do que os públicos. Uma vez um prefeito da região disse que ‘a melhor forma de unir a cidade era através do esporte, porque ele não tem partido’. Reconheço que não é prioridade, mas deveria passar pela Educação, que é onde está o esporte. Esquecemos esse binômio.

Como gestor, qual sugestão daria para a região na tentativa de reviver grandes momentos no esporte?
A primeira coisa que vejo é a capacitação dos gestores. E também não dá mais para colocar um camarada político numa gestão pública. Desde lá de trás, o cargo mais comum que é dado é o Esporte. Então se vê falta de gestão. A nossa região tem cidades com estrutura esportiva muito grande. Mas, por exemplo, o maior ginásio de Santo André, o Pedro Dell''''Antonia, foi inaugurado há quanto tempo? (59 anos) Faz uma relação entre populações, olha que estagnação ficamos. São Caetano, com 14 quilômetros quadrados, tem 14, 15 ginásios. Então nos falta uma sensibilidade, conhecimento e valorização da área.

Na semana passada morreu Bebeto de Freitas. Traçando um paralelo, é possível dizer que vocês seguiram passos semelhantes no esporte, indo das quadras à gestão, inclusive passando pelo futebol (Moreno foi dirigente no Paraná e no Santo André)?
Bebeto foi um cara extraordinário. Líder, impulsivo, guerreiro. Sempre muito combativo. Mudou o padrão voleibolístico, o modelo brasileiro. De 1981 em diante o vôlei deu salto grande e começaram a proliferar os ídolos. A geração de prata, que começou com a gente em 1977, quando chegou em 1983 explodiu e ninguém mais segurou o vôlei brasileiro. Então, o Bebeto foi o grande emergente de mudança. Era botafoguense e sempre disse que seria presidente. Acabou sendo. Mas nem ele pressupôs que futebol fosse missão tão difícil. Me parece que não ficou muito feliz, time teve queda e dificuldades financeiras. Depois foi para o Atlético-MG. O futebol é muito dependente das bolas que entram. Pode ser baita treinador, grande gestor. Mas se de quarta-feira e sábado a bola não entra, você roda. Foi experiência muito grande. Adorei as épocas no Paraná e no Santo André.

Você se lembra da primeira publicação no Diário?
Tenho muita coisa desde o News Seller. Fotografias, textos da época de Américo Brasiliense. Lembro perfeitamente de uma fotografia de 1963, estamos Décio Cataruzzi e eu, com a camisa do Primeiro de Maio, sendo convocados para a seleção paulista. Meu contato com o Diário sempre foi sensacional, me tratou muito bem. Talvez seja posição que a gente galgou. O Fausto Polesi (fundador do jornal) gostava de vôlei, estava nos jogos, escrevia bastante. Então sempre foi relacionamento bacana, de a gente conhecer os repórteres. Tenho ótimas lembranças e até hoje a gente ainda aposta no Diário como grande órgão da região.

Acredita que o Diário é um canal para auxiliar os times e esportistas da região?
A imprensa tem papel fundamental no apoio, divulgação. É quem faz a imagem. O cara pode ser um baita campeão, mas se a imprensa não estiver com ele, é ilustre desconhecido. O Diário tem papel preponderante, é formador de opinião, imagem e educação. Informação é tudo. Se faz isso corretamente, muda a forma de pensar de quem está lendo.

Ainda anseia realizar algum projeto no Grande ABC? Qual?
Vivemos numa região extremamente rica. Falava-se em quarto PIB do País, polo de riqueza... Mas a gente não tem projeto (esportivo). Para citar um exemplo, me orgulho do PAIE (Programa Aramaçan de Incentivo ao Esporte). Fui vice-presidente de esportes do Aramaçan depois de ter trabalhado no Pinheiros, no Paulistano, na Hebraica. Todos estes têm escolinhas de esporte. Toda criança tem uma habilidade, cabe à mãe e ao pai descobrirem isso. Não sei se com o pé, com a mão, na água, saltando, correndo... E uma escola de esportes é alfabetização esportiva, encontrar aquelas habilidades precoces nas crianças. Hoje, não existe mais a parceria entre Estado e cidade. O que está acontecendo? Falta de espaço? De iniciativa? Adoraria participar de projeto. Não só eu, mas tem muita gente que poderia ajudar em Santo André. Não me sinto esquecido, mas gostaria de ter ajudado. Ser um secretário de Esportes, não no intuito financeiro, mas para retribuir o que o esporte já me deu. Vou fazer 70 anos, estou ativo.

Que futuro espera para o vôlei e o esporte no Grande ABC?
Sou extremamente otimista, mas sempre com realismo. Vejo muita dificuldade. Hoje em dia qualquer projeto bem sucedido passa por dinheiro, instalação, profissionais competentes, vontade. Não vejo em Santo André nenhuma possibilidade de crescimento desse tipo. Talvez para a gente voltar a um patamar precisa torcer por recuperação econômica e, quem sabe, as empresas voltassem a olhar o esporte. Não vejo hoje preocupação com bons profissionais. Essa falta de perspectiva não vejo só em Santo André. Converso com o pessoal da nossa região e em Ribeirão Pires tem maluco, em Mauá tem, aqui tem... todo mundo querendo fazer alguma coisa, mas as probabilidades são pequenas porque não basta dedicação e abnegação, tem de ter condições de trabalho, reconhecimento.

A quem o menino que saiu do IAPI e chegou onde chegou agradece?
Minha mãe foi guerreira extraordinária, telefonista da Prefeitura, nunca me deixou faltar nada. Obviamente reconheço que muita gente contribuiu para minha carreira, meus treinadores Paulo Rezende, Lázaro de Azevedo Pinto, Valderbi Romani, Richard Nassif, Geraldo Faggiano. Tenho muita gratidão a Newton Brandão, um prefeito muito esportivo, professores da escola de Educação Física. Tive a felicidade de encontrar esposa sensacional, Selma, estamos juntos há 45 anos, seis filhos, todos democraticamente fizeram esporte. Quem não treinava, não comia (risos). Hoje três trabalham com esporte nos Estados Unidos, são treinadores, os outros estão aqui. E o moleque do IAPI... do terraço de onde moro vejo o prédio onde morei. Isso me faz lembrar o quanto é possível. Eu tinha um par de sapatos e com ele ia à escola, jogar bola, à festa. Graças a Deus, muito estudo, trabalho e dedicação, hoje tenho uma ou outra coisa. Quando olho pela janela e vou reclamar de alguma coisa, vejo o prédio 44... Ainda tenho amigos lá. 




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