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Racionais: show de consciência social
Cássio Gomes Neves
Do Diário do Grande ABC
25/10/2004 | 09:25
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Eram 5,3 mil ouvintes. Número suficiente para eleger um vereador em São Bernardo ou para preencher um culto religioso em templos com dimensões pouco modestas. Contudo, as milhares de pessoas presentes ao Clube da Ford na noite de sábado não tinham como fim nem urna nem altar. Bem, pelo menos não oficialmente, pois muito se falou em fé e em consciência social nesta edição regional do Hip Hop na Veia, evento que comemora dez anos de existência e que, nesse fim de semana, levou à sede da agremiação de São Bernardo as bandas Racionais MCs, Facção Central, Consciência Humana e SNJ.

É redundante dizer que os racionais Mano Brown, KL Jay, Ice Blue e Edy Rock eram os reis da noite de sábado. Estão para o rap nacional como João Gilberto para a bossa nova. Sua majestade não reluz em coroas e mantos quaisquer; está grafada nas bombetas (bonés), nos blusões que escorrem até os joelhos e em cabeças raspadas conforme os contornos do logotipo da banda. Por outro lado, seu comportamento com relação à mídia remonta ao de outras altezas como Roberto Carlos e Chico Buarque. Raramente concedem entrevistas a veículos que julguem espelhar a elite. De antemão, os organizadores do evento, Nena e Lozinho, alertaram que não seria fácil um “lero” com o quarteto.

Uma pequena pane no gerador que fornecia a energia para o equipamento de som deixou o público meio “cabreiro” às 23h. Quinze minutos depois, problema solucionado. Mais 20 minutos e então subiu ao palco o Facção Central, grupo formado no Grajaú (bairro de São Paulo), que torpedeou o público com Sei que os Porcos Querem Meu Caixão e A Marcha Fúnebre Prossegue. O orgulho da periferia, onde convergem vidas secas, Canudos, Zumbi, Malcolm X e Bambaataa, gaseificava-se sob o forro do ginásio onde foi alojado o show, vocalizado pelos “faccionais” Eduardo e Dum-Dum: “Hip hop é isso aqui: favelado no palco e favelado na platéia”.

Enquanto isso, um funcionário da produção dos Racionais MCs que preferiu se identificar apenas como Edson disse, sobre uma possível conversa da reportagem com os patrões, que “não é que os caras não dão entrevistas, mas...”. Lacônico, afirmou que os Racionais costumam falar somente a publicações às quais seu público tem acesso de fato, tanto pelo preço baixo quanto pela linha editorial.

Na platéia, neófitos e simpatizantes de longa data. O supervisor de qualidade Douglas Garcia, 28 anos, desligou-se momentaneamente do Faith No More e do Nação Zumbi que venera “a fim de conhecer o movimento” do rap. Já o técnico Alexandre Alves da Costa, 29 anos, dizia estar ali para “relembrar as noites de Projeto Radial (casa noturna em São Paulo) e Clube House (em Santo André) na década de 1990”. Havia também os desprevenidos, como os amigos Só e Rud, ambos de 21 anos, que tomaram três conduções para vir do Capão Redondo, onde moram, e tiveram de ver o show do lado de fora, aproveitando a visão garantida pelo portão aberto do ginásio. “Tava meio desinformado, não sabia que o ingresso estava 15 mangos (R$ 15) na porta”, afirmou Rud.

Os “informados” que ocupavam o interior do ginásio ainda viram as entradas dos grupos SNJ e Consciência Humana, que evocavam o “homem lá de cima”. “Ser consciente: é o que tá faltando pra todo mundo e o que a gente tenta transmitir”, disse HC Preto Aplique, detalhando o porquê do nome da banda Consciência Humana, da qual é vocalista.

Eram 3h da madrugada quando a caravana dos Racionais MCs estacionou no clube. Atravessaram o corredor que levava ao camarim cumprimentando fãs e colegas. A entrevista não parecia tão distante ante tamanha solicitude e outro integrante da produção, com pinta de Lenny Kravitz, acenou com uma possibilidade: “Após o show, eles falam”.

Cerca de meia hora depois, começou o tão aguardado show e o Clube da Ford veio abaixo, com uma platéia que ecoava sílaba a sílaba extensas letras como as de Diário de um Detento, Negro Drama, Jesus Chorou e Da Ponte pra Cá – esta última é a do verso “Cada favelado é um universo em crise”. Filósofo dos oprimidos, função que Mano Brown soma a sua retórica e seu carisma, misto de líder político e pastor de um rebanho aderente à revolução da consciência. “O rap pode mudar sua vida”, dizia Brown. O show avançou até as 5h20. Era a hora da entrevista. Passou algum tempo até o sósia de Kravitz acenar negativamente, com o polegar para baixo, à moda dos imperadores romanos ao sentenciarem gladiadores, para dizer que o acesso fora negado. Nada como um dia após o outro.




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