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Favela Naval 20 anos depois

Atualmente são 1.500 famílias morando na comunidade localizada na divisa entre Diadema e São Bernardo, como parte do bairro Piraporinha. Em 1997, esse número era ainda maior, com 2.500 famílias

Yara Ferraz
do Diário do Grande ABC
30/03/2017 | 07:07
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Heloisa Ballarini/Banco de Dados


A travessa entre as ruas Idealopolis e José Francisco Brás (antigas ruas Naval e Afonso Braz), em Diadema, está marcada para sempre na história da favela Naval. Há exatos 20 anos, imagens feitas por cinegrafista amador de policiais militares que faziam barreira no endereço, também conhecido como beco da morte, foram divulgadas pelo Jornal Nacional, da Rede Globo, e tornaram a comunidade conhecida nacionalmente pelas cenas de violência (leia mais na página ao lado) com que moradores eram abordados. Na ação, o conferente Mário José Josino, com 30 anos à época, foi morto por disparos do policial Otávio Lourenço Gambra, o Rambo, homem que a comunidade não consegue esquecer.

Mas muita coisa mudou na Naval em duas décadas. Atualmente são 1.500 famílias morando na comunidade localizada na divisa entre Diadema e São Bernardo, como parte do bairro Piraporinha. Em 1997, esse número era ainda maior, com 2.500 famílias. A informação é da Associação 25 de Julho, que atua no espaço há 26 anos.

Conforme o presidente Carlos Antônio Rodrigues, diversas causas contribuíram para essa diminuição de moradores. “Passamos por incêndios (em 1991, cerca de 1,5 mil famílias ficaram desabrigadas e duas pessoas morreram; em 1999 foram 29; e em 2010, 100 barracos foram atingidos). Além disso, grande parte da comunidade foi para um conjunto habitacional no Serraria”, explica.

A dona de casa Vera Lúcia Pereira de Lima, 62 anos, foi uma das primeiras a ocupar a área. Em 1969, ela construiu barraco de madeira à beira do Córrego Capela, que originou a comunidade da Naval.

Nascida em São Bernardo, ela veio com o marido e a família dele em busca de oportunidades de trabalho. À época, prestava serviço como faxineira. Durante este período, enfrentou incêndios, sendo que em um deles, em 1991, perdeu todos os pertences. “Acho que naquela época a pior coisa era o toque de recolher. Depois das 19h ninguém saia na rua. Depois que aconteceu o caso ficamos três meses sitiados, com tudo fechado. Tínhamos medo de sair”, contou.

Ela relatou que um familiar, que à época trabalhava como operário, foi vítima da violência policial no mesmo período em que o caso que tornou a favela conhecida veio a público. “Ele trabalhava aqui perto e voltava com a marmita. Já era começo da noite quando foi abordado por policiais e agredido na barriga. Até hoje ele sente dores por causa disso.”

Hoje, a família cresceu. São cinco filhos e 15 netos, sendo que a maioria continua morando na região. A casa de Vera fica na parte urbanizada, e ela se orgulha do local onde mora com o marido e dois filhos, com renda de aproximadamente R$ 1.000. A única coisa que ficou daquela época foram lembranças dolorosas. “Tem dias que até durmo com a porta sem trancar. Sabemos que tem violência, mas nem compara com antes. A gente vivia com medo de sair de casa. Hoje é uma paz.”

Para a doméstica Neusa Matias de Souza, 51, que mora no local há 30, o dia da morte do conferente ficou marcado para sempre na memória. Isso porque ela, o ex-marido e os dois filhos saíram de casa logo depois de ouvir os dois disparos. Apesar de o horário não ser recomendado, ela precisava viajar. Quando passou no endereço, ficou cara a cara com Rambo.

“Ele olhou dentro do carro e apontou a arma na nossa cara. Acho que como estávamos com crianças, mandou a gente seguir em frente. Escutei quando ele falou para os companheiros ‘vamos deixar passar porque tem uma vagabunda junto’ ”, comentou.

Naquela época, a comunidade já conhecia as abordagens e vivia com medo. Era raro quem se arriscava sair de casa. “Já tínhamos perdido a paz. Foi uma situação horrível, que ninguém nunca tinha imaginado que ia acontecer. Precisou de um ato trágico para que o País conhecesse o horror que a gente passava aqui dentro”, disse Neusa, emocionada.

Atualmente, ela vive no conjunto habitacional construído na entrada da comunidade, em 2012. Mesmo admitindo as melhorias no bairro, não gostaria de continuar a viver ali. “Estou aqui por falta de opção, porque é onde é possível morar. Claro que hoje as coisas melhoram, e muito. Não está diferente de outros bairros. Antes não tinha asfalto, era um amontoado de bequinhos sem saída, sem luz e asfalto. Hoje temos cara de bairro.”

DIÁRIO
As cenas que foram ao ar há duas décadas mostrando a violência da abordagem policial eram, na verdade, de ação realizada na madrugada do dia 7 de março de 1997.

No dia seguinte à morte de Josino, na edição de 8 de março daquele ano, o Diário publicava com exclusividade a história. À época, ainda sem a proporção nacional que o caso tomou, os dois colegas do morador da favela afirmavam que o conferente tinha sido morto pela PM (Polícia Militar).

Na reportagem da época,quando as filmagens ainda não tinham sido divulgadas, os seis policiais envolvidos tinham sido detidos, mas negaram envolvimento no caso. Um dos soldados, Nelson Soares Silva Junior, que aparece como um dos agressores nas imagens, chegou a dizer à equipe de reportagem que não estava no local.

Associação do bairro já capacitou 8.000 crianças

Quase ao lado do conhecido beco da morte, a Associação 25 de Julho mantém as portas abertas para a comunidade durante o dia inteiro. Cerca de 8.000 crianças e adolescentes já passaram pelos cursos profissionalizantes oferecido pela entidade filantrópica, fundada em 1992 e que completa 25 anos de atuação em julho.

Fundador do projeto, Carlos Antônio Rodrigues, 52 anos, o Tato, também conserta celulares e eletrônicos no local. Ele é conhecido por toda a comunidade e costuma orientar os moradores que o procuram sobre qualquer assunto.

Porém, em 1992, ano em que construiu seu barraco na comunidade, com a ex-mulher e os dois filhos, a situação era diferente. Foi quando sentiu que precisava fazer algo pelas crianças. “Era uma escola do crime (a Naval). Era uma tragédia ver a condição dessas crianças, que ficavam nas ruas o tempo todo, não estudavam e mal tinham infância.”

Segundo ele, a situação na comunidade era preocupante. "Ninguém saía de casa durante a noite, desde o início daquele ano, quando começaram as operações policiais. O caso do Rambo foi a gota d’água, mas a situação já era complicada”, relatou.

Para conquistar a confiança dos moradores locais, ele precisou se reunir com pais e crianças em uma quadra, mais de uma vez, para explicar o projeto. Com a autorização para seguir com o trabalho, iniciou as aulas para 12 crianças.

Atualmente, há cursos de inglês, espanhol, computação, entre outros, para 250 alunos. Tudo é feito por meio de parcerias e trabalho voluntário. Eles se preparam para o lançamento de um canal no YouTube, na próxima semana, que deve trazer reportagens feitas pelos estudantes sobre a própria comunidade, além do conteúdo das aulas.

“Hoje, são mais de 18 cursos e eu fico até emocionado ao pensar nas pessoas que passaram por aqui e hoje têm uma profissão. Dediquei praticamente metade da minha vida à associação, e esse sempre foi o nosso objetivo aqui dentro”, relata, emocionado.  




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