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Desenhos de Fellini ganham animaçao em curta
Do Diário do Grande ABC
12/05/1999 | 19:08
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Antes de virar cineasta, um dos maiores artistas da história do cinema, Federico Fellini foi caricaturista, ganhando a vida no jornal Domenica del Corriere e no florentino 420. Veio dessa época a mania que ele carregou pela vida afora. Quando tinha alguma idéia, mas ainda nao sabia direito como concretizar os personagens que tinha na cabeça, Fellini desenhava. Os desenhos serviam de base para as filmagens compondo aquilo que se chama de storyboard.

Aves viram mares, asas viram ondas na imaginaçao felliniana. Desde 1960, Fellini cristalizou o hábito de colocar suas imagens oníricas no papel. Podia-se prever que, se fossem animados, esses desenhos comporiam um filme de grande densidade imaginativa. Pois eles foram. Em 1997, o diretor russo Andrei Khrjanovsky animou os storyboards de Fellini. O resultado é o curta "A Longa Viagem", que o Eurochannel (da TVA) exibe no sábado, às 18h30, dentro do horário dos Eurocurtas. É um programa imperdível e nao só para os maníacos do cineasta que morreu em 1993.

O compositor Nino Rota surge numa sessao de trabalho com o mestre, Marcello Mastroianni posa para fotografias e outro habitué do cineasta, o roteirista Tonino Guerra - que escreveu o texto para o curta -, conta como Fellini adorava camuflar a mulher, a atriz Giulietta Masina, em todas as figuras femininas que desenhava. Mas o melhor sao mesmo os desenhos - as mulheres gordas, com sua carnalidade exuberante, o transatlântico (o modelo do Rex de E la Nave Va) em que o próprio diretor gostava de viajar em busca da fantasia, fugindo à banalidade do cotidiano.

Fellini começou a registrar metodicamente as imagens de seus sonhos no papel nos anos 60. Antes, já havia pensado em desenhá-los ao visitar o ateliê do artista plástico Rubino, em 1938, e ver seus desenhos de fábulas e ilustraçoes de sonhos. A diferença é que Rubino era um pintor e Fellini um caricaturista. Sua tendência foi sempre caricaturar seus sonhos. Durante mais de 20 anos Fellini organizou seu sonhos em livros, grandes volumes encadernados que ele guardava em casa e aos quais recorria em busca de inspiraçao para os filmes.

Algumas vezes, os desenhos realmente foram transformados em filmes, casos de "E la Nave Va", "Amarcord" e "A Cidade das Mulheres". Outras vezes, o cineasta tentou, mas nao conseguiu. "A Viagem de G. Mastorna", que ele desenhou inteirinho, nunca foi realizado. Um volume de desenhos desapareceu durante uma mudança. Outro foi emprestado para um congresso de psicanalistas norte-americanos (e nunca foi devolvido). Fellini ficou com medo de que ele fosse publicado, mas isso nunca ocorreu. Foi um dos motivos para que os seus registros de sonhos se fossem tornando cada vez mais rarefeitos, nos anos 80.

O cineasta, que evocou sua infância em filmes como "Oito e Meio", "I Clown" e "Amarcord", dizia lembrar-se apenas de um sonho de infância. Ele estava no sótao de sua casa em Rimini, onde pai criava coelhos. Um dia ouviu gemidos vindo do fundo de um corredor. Foi lá e viu o pai, com um capote, sentado sobre a privada. "Aquela imagem me causou um sentimento tao forte de desolaçao e tristeza que acordei".

Nao é preciso invocar Freud e sua "Interpretaçao dos Sonhos", que completa cem anos. O pai da psicanálise investigou o sonho como forma de se atingir o inconsciente. Nao por acaso, a "Interpretaçao dos Sonhos", de Freud, é uma das obras de referência de todo crítico de cinema que se preze. No caso de Fellini, cinema e sonho estiveram relacionados desde a infância do artista. Ele chegou a afirmar que, quando criança, acreditava que houvessem duas vidas - uma de olhos abertos e outra de olhos fechados. O espetáculo começava quando ele fechava os olhos. Fellini sonhava e transformava os sonhos em cinema.

Grande cinema - Alguns de seus melhores filmes nasceram desses sonhos alucinantes. "Amarcord", ele jurava que fez depois de sonhar que dançava agarradinho com o diretor de teatro Giorgio Strehler - que, só como curiosidade, vestia o vestido que Fellini colocou na personagem Gradisca, no filme. O sonho mais maluco nao chegou a virar filme, sofrendo da mesma maldiçao de "G. Mastorna". Mas "Viagem a Tulum" ganhou imagens - aquelas produzidas por Milo Manara, que transformou o roteiro do filme nunca concretizado de Fellini numa história em quadrinhos.

Os desenhos de Fellini concretizam uma fascinante viagem ao imaginário de um dos artistas mais criativos do cinema. Fellini é sempre tao suntuoso e exuberante que "felliniano", como adjetivo, virou sinônimo de coisa fora de série, extravagante, excepcional e, principalmente, muito criativa. No curta do Eurochannel, a viagem nas asas da imaginaçao de Fellini é para a ilha na qual ele se despede fazendo uma inesquecível declaraçao de amor a Giulietta Masina. Amou-a profundamente e fez dela a intérprete antológica de personagens como Gelsomina (de A Estradas da Vida) e Cabíria. Tanto amor nao impediu que Fellini tivesse mantido, a vida toda, uma filial. Tinha a mulher e a outra, cuja existência só se descobriu após sua morte, quando Anna Giovannini convocou a imprensa para falar dos quase 40 anos em que proporcionou cama e carinhos extraconjugais ao gênio do cinema italiano.




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